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ATA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA EM SESSÃO SOLENE EM HOMENAGEM A
ALVACYR PEDRINHA E VITÓRIO BERGO, EM 13 DE MARÇO DE 1999

 

Em treze de março de mil novecentos e noventa e nove, na Rua São Francisco Xavier, 524, 11.º andar, no RAV 112, às 16,00h, foi realizada sessão solene em homenagem aos acadêmicos Alvacyr Pedrinha e Vitorio Bergo. Aberta a sessão pelo Prof. Leodegário A. de Azevedo Filho, foi aprovada a ata da sessão administrativa de 28.11.1998. A seguir, foi dada a palavra ao Prof. Rosalvo do Valle, cujas palavras são reproduzidas na íntegra. “Quando lia ou relia alguns textos de Alvacyr Pedrinha, recolhendo dados para este discurso, vi uma referência a Joaquim Nabuco. Pela semântica do texto não foi difícil perceber que se trata daquela página antológica que os estudantes da minha geração sabiam de cor: “o traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual este terá sempre de se cingir, sem o saber.” Não encontrei o exemplar de Minha Formação para fazer a transcrição fiel, mas numa conferência sobre Casimiro de Abreu, Pedrinha cita-o e com o mesmo propósito: mostrar que os primeiros anos de vida são, em certo modo, os da “formação instintiva ou moral, definitiva” de cada um. Pedrinha se enquadra exemplarmente na afirmação de Joaquim Nabuco. Não deixa dúvidas o discurso, intitulado O Coronel Domício Martins da Silva, meu avô, um paradigma de vida, que leu no dia 12 de setembro de 1991 no Auditório Fortunato Redivo, quando a Prefeitura de Ibiraçu homenageou todos os prefeitos – e, pois, seu avô – nas comemorações do centenário de emancipação política do município. Alvacyr Pedrinha era capixaba e se orgulhava de seu amado Estado do Espírito Santo. Nasceu em 09 de setembro de 1919 num lugar chamado Pau Gigante, denominação depois substituída, contra o seu voto, pelo indianismo Ibiraçu, Comarca de Santa Júlia, naquele tempo distrito de Santa Cruz. Filho de Joaquim Pedrinha e de Noêmia Martins Pedrinha, filha (e mais catorze irmãos) do Coronel Domício Martins da Silva e Petrolina da Motta e Silva. Pedrinha frisa que o título de Coronel lhe fora conferido pelo Governo Federal “pelos serviços relevantes prestados à comunidade”, e “o seu modo de ser, o seu caráter não se identificava, em hipótese alguma, com aqueles coronéis retratados por Jorge Amado em Terras do Sem Fim, homens terrivelmente pragmáticos.” Perdeu o pai muito cedo (1923), aos 4 anos de idade. Nunca aceitou essa morte, e as consolações dos adultos, que invocavam os desígnios de Deus, recebiam dele uma resposta malcriada e de profunda revolta. É possível que aí esteja a origem de tanta incredulidade que o acompanhou por muitos anos. Tinha cinco irmãos, agora reduzidos a dois, um dos quais me dá a honra de estar presente. Foi precocemente para a escola aos quatro anos – dizia-me – por não agüentar ouvir o choro inconsolável da mãe pela perda do marido. Um tanto isolado na turma, mereceu tratamento especial da professorinha de origem italiana e de olhos azuis, que foi sua primeira paixão. Um dia ele a apresentaria à mulher, Zoé, como a sua primeira noiva. O garoto já revelava outras precocidades... avô fez-se o patriarca de toda a família, o “pai Domício”, sob cujo teto viviam os filhos, as filhas viúvas, netos órfãos e sobrinha órfã, os quais mantinha a princípio com os vencimentos de guarda-livros e depois com os rendimentos de sua própria casa comercial, a venda do interior, que tinha de tudo. Tornou-se figura de prol, vindo a ser prefeito em dois mandatos por um largo período de 18 anos, tendo-se revelado não só bom administrador (construiu uma usina hidrelétrica com linha telefônica!), mas também um incentivador de diversas atividades artísticas de que participavam pessoas da família. Terminado o segundo mandato em 1928, Domício Martins da Silva, preocupado com o futuro da família, resolve sair de Ibiraçu para lugares de mais recursos, motivado também pelo conselho de alguns filhos já moradores e bem sucedidos no Espírito Santo e no Rio de Janeiro. O nosso Alvacyr Pedrinha aos nove anos inicia, então, a longa viagem, com estágios em Cachoeiro do Itapemirim, Bom Jesus do Norte e Bom Jesus do Sul (hoje Bom Jesus do Itabapoana) até chegar ao Rio, em 1931. Essas viagens e estadas devem ter deixado profundas lembranças no menino de nove anos, a julgar pelos registros que faz, aos 72 anos, no discurso que serve de roteiro. Aqui chegado, Pedrinha já tinha condições de prestar exame de admissão. Fê-lo no Colégio Pedro II, foi aprovado mas por dificuldades financeiras só pôde cursar dois anos mais tarde. Em julho de 1939 a família sofre um duro golpe com o falecimento de D. Petrolina. Diz Pedrinha dos avós que “os dois eram uma só carne... Como neto que viveu sempre em sua companhia, nunca vi, nunca ouvi, nunca pressenti nenhum gesto de enfado, de impaciência entre os dois.” Sempre “solidários em tudo”. O avô, aposentado, “recolheu-se definitivamente ao lar, donde raramente saía”, mas onde recebia a visita “de compadres, afilhados, coestaduanos , amigos, correligionários” que vinham povoar a solidão do pai Domício. Com ele Pedrinha incorporou definitivamente o hábito de ler. O avô adotara a leitura como lazer. Lia muito e lia tudo, sem discriminação de autores, clássicos ou modernos. E nesse autodidatismo literário elegera como autor predileto nada mais, nada menos que a Machado de Assis, leitura que o neto ainda imaturo não podia aceitar bem, motivado que estava com José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Amado Fontes, Raquel de Queirós, a muitos dos quais conheceria pessoalmente. Curioso é que é Machado de Assis que ocorre a Pedrinha e reaparece, esplêndido, para finalizar o discurso de formatura em 21 de dezembro de 1946, por ventura uma homenagem inconsciente ao avô: “esta a glória que fica, eleva, honra e consola”. Liam quase sempre o mesmo autor e discutiam a obra num diálogo franco, aberto, “sem autoritarismo” – como Pedrinha faz questão de registrar -, deixando entender que esse comportamento se adequava a seu espírito irrequieto e identificava no avô um humanista. Esse leitor assíduo era também um homem religioso. Fazia diariamente suas orações matinais, começando pelo Pai Nosso, e prosseguia com a oração de S. Francisco de Assis, com o Magnificat (“Minha alma glorifica o Senhor / meu espírito exulta de alegria / em Deus meu Salvador...”), e com epístolas de S. Paulo. Pedrinha, meio descrente e sempre irreverente, às vezes perguntava ao avô se ele “estava preparando o seu lugar lá em cima”. Confessa, porém, que lhe deve a motivação para ler as epístolas paulinas. Domício Martins da Silva morreu no alvorecer do dia 11 de janeiro de 1947, deixando à família um exemplo de vida modelar, de fidelidade, de religiosidade , de solidariedade, de não esmorecimento diante dos obstáculos, e de aceitação da vontade de Deus – tudo bem presente na vida do nosso homenageado. Contestador, polêmico, raciocínio rápido e palavra contundente, de uma franqueza às vezes rude, Pedrinha era, porém, capaz de no momento certo, com igual veemência, assumir uma desconcertante atitude de prudência e equilíbrio, como no discurso de formatura dos professorandos de 1946. Sem trair suas convicções de cidadão e de educador, Pedrinha soube dar o tom acadêmico adequado a que não faltaram duas citações em latim – quase um estilo de época. As idéias que defendeu têm ainda hoje admirável atualidade 1. Imaginem essas características em debates estudantis no Colégio Pedro II, colégio-padrão e modelo de pluralidade de idéias, onde o entrecruzar de correntes ideológicas deveria ser um sadio exercício de cidadania a começar pelo corpo docente, com alguns mestres que marcaram definitivamente o pensamento nacional. Nesse ambiente de debates é que Alvacyr Pedrinha, de temperamento já fácil de fumegar, forjou a sua têmpera de homem de luta, defensor intransigente de sua liberdade e de seus direitos. E foi assim no Colégio Pedro II como aluno e como professor; assim foi no seu primeiro emprego no Rio, na Leopoldina Railway, onde, apesar da necessidade de trabalhar para sobreviver, nunca deixou de protestar “contra a exploração do capitalismo estrangeiro”; e não foi diferente nos colégios em que trabalhou, nos concursos que fez, nas reuniões profissionais ou sociais. Foi assim nas reuniões do PT, em que se fez notar por uma atuação política firme mas não radical, atuação que o Partido reconhece quando, na aposentadoria, solicitou à Mesa da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro fosse consignada em ata Moção de Congratulações a quem no exercício do magistério “contribuiu decisivamente na formação de várias gerações, tanto no campo das letras como na consciência política” dos alunos. Um de seus dois ídolos na Faculdade Nacional de Filosofia, o Dr. Alceu Amoroso Lima (o outro era o Prof. Sousa da Silveira), lhe disse um dia que só esperava que Alvacyr não passasse a defender outras causas, conhecedor que era de sua afiada dialética. Dono de sua liberdade, em solteiro viveu intensamente a vida do Rio. Gostava de teatro e freqüentava-o, tendo conhecido os grandes artistas da época. É um traço atávico: o avô, prefeito, inaugurou atividades teatrais em Ibiraçu no próprio salão da Câmara Municipal, “com palco e tudo”, com uma peça escrita e levada à cena pelo filho João Motta e Silva e sua mulher Áurea Bastos Motta e Silva, sendo participantes outras pessoas da família e jovens da localidade. Em Bom Jesus do Norte e Bom Jesus do Sul novas atividades teatrais em peças do casal e, até, uma encenação de Martins Pena. Gostava de dançar. Não podia negar o sangue paterno. O velho Quincas, seu pai, fora pezinho de ouro em Ibiraçu. Nas festas de seus “irmãos judeus”, como gostava de dizer, nessas então Alvacyr se entregava inteiramente. Zoé nem sempre podia continuar as danças e ficava a vê-lo prosseguir animadíssimo. Em linhas gerais aí estão alguns traços da personalidade de Alvacyr Pedrinha. Detive-me propositalmente no discurso sobre o avô Domício, texto muito caro a seu autor por ser, afinal, a história de sua vida. Texto de memórias, rico de dados que nos ajudam a entender melhor a estrutura profunda de nosso homenageado. O Acadêmico Maximiano de Carvalho e Silva, colega e amigo de Pedrinha desde a Faculdade Nacional de Filosofia, sublinhou algumas marcas fortíssimas de sua personalidade no artigo repassado de terna amizade que publicou no Boletim da Associação dos Professores Inativos da UFF (ASPI/UFF) no número de dezembro de 98. Volto agora ao Pedrinha que todos conheceram do convívio, de participações em encontros acadêmicos, de obras, de comportamento político e religioso. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (curso que parece ter feito para atender ao avô), Pedrinha tornou-se conhecido como professor. Era bacharel e licenciado em Letras Clássicas, tendo colado grau de licenciatura, em 1946, como orador da turma escolhido “por concurso” (ele fazia questão desta referência), na então Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Colega de turma de Zoé Fonseca Régua, viriam a casar-se em 25 de janeiro de 1952, e foram pais de cinco filhos e avós de seis netos. Zoé Régua Pedrinha foi reconhecidamente a companheira de todos os momentos, absolutamente fiel às promessas do sacramento do matrimônio – um exemplo bíblico de mulher forte. No ensino médio oficial foi professor, por concurso, do Colégio Pedro II, da Prefeitura do Distrito Federal, transferido para o Estado da Guanabara com a mudança da capital, e do Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia. No ensino particular trabalhou por mais tempo na MABE, instituição de sua preferência por abrigar alunos de menor poder aquisitivo. No ensino superior lecionou na Universidade do Estado da Guanabara, na Universidade Federal do Rio de Janeiro e, por concurso de provas e títulos em que foi o primeiro colocado, na Universidade Federal Fluminense. Lecionou ainda, por pouco tempo embora, na Fundação Educacional e Universitária Campograndense. Na UFF obteve o título de Livre Docente em Língua Portuguesa, que o credenciou para trabalhar nos cursos de pós-graduação lato e stricto sensu. Participou de todas as atividades docentes da vida universitária, exercendo plenamente seu mister no ensino, na pesquisa e na extensão. Como frutos dessas atividades destaco três trabalhos. O primeiro é a tese de livre docência intitulada Estudo de Variantes em Poemas de Murilo Mendes – tentativa de explicação estilística e semântica, Niterói, 1975. Pedrinha não era um iniciante em Murilo Mendes. Já em 1945 publicara com o nome de Delvo Pedrinha no Suplemento Literário do jornal A Manhã (junho/45) o pequeno mas substancioso artigo Murilo Mendes e Poesia. Os dois trabalhos estão citados por Luciana Stegagno Picchio na edição de Poesia Completa e Prosa de Murilo Mendes, que preparou para a Editora Nova Aguilar, Rio, 1994. Estando aqui em 24 de março desse ano, a eminente murilófila manifestou pessoalmente seu apreço ao nosso Acadêmico. A tese é original e pioneira. Situa-se na linha de pesquisa que Maximiano de Carvalho e Silva iniciou no Instituto de Letras da UFF, quando propôs o entendimento de Filologia como crítica textual. Pedrinha, dotado de fina sensibilidade para textos, tomou o rumo da interpretação estilística e semântica das variantes, estabelecendo logo distinção entre variante e variação: “Esta ao nosso ver se enquadra ao macrotexto e aquela, ao microtexto.” A obra já foi julgada. Relendo-a, agora com outro objetivo, pergunto-me se o autor muitas vezes ao falar do poeta percebera que falava de si próprio, como ao ver em Murilo Mendes um poeta “fiel a si mesmo, fiel à sua vida”; “um participante da vida em todas as dimensões”; “um temperamento ultra-rebelde, avesso a grupos”. Pedrinha poderia tomar para si esta afirmação de Murilo: “Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo”. E não ficam aí as identificações do autor com o seu poeta, como provam os comentários sobre as variantes. Volto ao artigo de Maximiano de Carvalho e Silva e transcrevo um trecho que situa bem o segundo trabalho que, no meu entender, merece referência especial na produção científica de Alvacyr Pedrinha ligada a sua atividade docente na Universidade: “Pessoa de sensibilidade rara, atenta aos grandes problemas do mundo contemporâneo, Pedrinha muito se afeiçoara nos últimos anos da vida profissional, em atitude de evidente e marcante solidariedade, ao destino das antigas colônias portuguesas na África, especialmente Angola, e passara a estudar a cultura, a literatura e os aspectos particulares da língua portuguesa nesses novos países que lutam por firmar os princípios da sua independência. Chegara mesmo, em atitude pioneira, no curso de mestrado do Instituto de Letras da UFF, a encaminhar alguns alunos na direção de tais estudos, sem dúvida entre os de sua preferência até o fim da vida.” Um dos produtos dessa afeição é Conexão lusofônica Angola-Brasil, em que Pedrinha considera generalização excessiva e imprópria a inclusão na lista de arcaísmos de alguns fenômenos lingüísticos ocorrentes no português do Brasil e atestados fartamente na língua escrita, sobretudo a partir do Romantismo. “Há arcaísmos no português do Brasil. Longe de nós negarmos tal existência. Mas generalizar, não.” Levou-o a essa afirmação enfática o fato de que muitos desses fenômenos ocorrem igualmente em escritores africanos – o que exige, pelo menos, repensar a questão. Assim também, com a classificação de brasileirismos dada a fatos gramaticais grandemente atestados no português de Angola, objeto de sua pesquisa. São tais e tantas as afinidades lingüísticas, que se impõe o estudo mais demorado de uma conexão lusofônica angolano-brasileira. Pedrinha propõe um registro amplo dessas ocorrências em prosadores africanos para um confronto objetivo, desapaixonado, com o português de Portugal e com o português do Brasil. Exclui os poetas pelo caráter conservador da linguagem poética, fortemente calcada na língua formal. Cito-o textualmente:“Hoje, a nosso ver, urge revisar o que é “brasileirismo”. Para ilustrarmos o que acabamos de expor, apoiamo-nos, não só em Boaventura Cardoso, mas também em outros autores como Arnaldo Santos: Kinaxixe e Outras Prosas; Jofre Rocha: Estórias do Musseque e José Luandino Vieira: Vidas Novas. A nossa comunicação consta dos seguintes itens, e quase todos se conectam com o português do Brasil: 1.1 – Uso da preposição em com verbos de movimento ou em expressões indicadoras de proximidade. Emprego do relator em com sintagmas indiretos no português de África, não detectado no português do Brasil. 1.2 – Uso do verbo ter com valor impessoal. 1.3 – Polissemia morfossintática do pronome lhe. 1.4 – Sintaxe de colocação do pronome átono na frase. 1.5 – Você, pronome referencial de tratamento, não só em Angola, mas, também, no Brasil. 1.6 – Curiosidades fonológicas.” 3 Finalmente, o terceiro trabalho é A letra do Hino Nacional Brasileiro. A história desse texto é interessante. Nasceu de uma aula de Estudo de Problemas Brasileiros numa turma que reunia alunos de História, Ciências Sociais, Geografia, Letras... Era inacreditável que em pleno regime militar alguém se arriscasse a tratar de um assunto que poderia parecer discurso encomendado e para um auditório que reunia a tropa de choque da resistência ao regime. Pedrinha pesquisou, consultou a bibliografia específica, fez as suas interpretações semântico-estilísticas e o resultado foi uma aula conduzida de tal maneira, que saiu da sala aplaudidíssimo. Os alunos entenderam a lição e perceberam logo as posições do professor, que ao falar de amor à pátria não tinha nada a ver com as pregações de moral e civismo do discurso oficial.Eis um trecho: “A tônica dominante do Hino Nacional é, indiscutivelmente, o amor acima de tudo à Pátria e à liberdade. O número de substantivos, adjetivos e verbos com que se faz profissão de amor ao Brasil é apreciável. O poema composto por Osório Duque Estrada é um belo canto libertário e entrosa-se muito bem com a música de Francisco Manuel da Silva. Ambos os autores, nascidos em épocas bem distintas, se unem pelo sentimento de brasilidade. Osório Duque Estrada intuiu de maneira bem feliz o fato histórico da nossa Independência , pois atribuiu ao povo heróico o brado retumbante. O imperador, naquele momento, pressionado pelo povo que aspirava a libertar-se de Portugal, foi o legítimo intérprete da vontade popular. É incompatível com um povo heróico viver sem liberdade, a qual deve vir sempre associada à responsabilidade, à justiça, para que a nação caminhe na realização dos seus altos destinos. Sem o sol da liberdade, não viceja o progresso. O sol está para o dia como a noite está para as trevas. O dia liberta o homem das trevas da noite que o deixa inseguro, e o sol da liberdade o liberta das trevas do medo. Sem liberdade, não há vida, mas um simulacro de vida. A liberdade, bem diz o autor da letra do Hino Nacional, é uma conquista do homem. Viver sem liberdade é ser um vivo-morto. É ser um espectro de gente. “Em teu seio, ó liberdade, / Desafia o nosso peito a própria morte!”. A morte passa a ser uma entidade, concretiza-se. Não temer a morte para defender o direito de viver com dignidade é o que se deve fazer. E não faltam nomes, nas páginas de nossa História, de brasileiros, que ofereceram a sua vida em holocausto para que nós conquistássemos a nossa Independência. Morreram em sua defesa, mas hoje, imortais, vivem no coração da Pátria agradecida.”4 Alvacyr nunca perdeu sua marca de homem do interior: sempre que podia, visitava sua terra, revia sua paisagem, visitava seus mortos no Dia de Finados redistribuindo as flores, de modo que todas as sepulturas ficassem floridas. Ele queria viver a tranqüilidade de cidade do interior. Encontrou, mais perto, esse local em Barra de S. João, onde construiu a casa que se tornou seu refúgio espiritual e para onde freqüentemente levava amigos, recebidos sempre com a fidalguia da inseparável Zoé. E mais: era a terra de Casimiro de Abreu, seu outro poeta querido. Na terra adotiva promoveu e incentivou atividades culturais com o patrocínio da Casa de Casimiro de Abreu. Dessa contribuição tenho em mãos duas conferências, embora os ofícios de agradecimento ao autor registrem três: O mar de Casimiro de Abreu (1979) e Casimiro de Abreu e a Barra de S. João (1980). Na primeira faz o levantamento das ocorrências de mar nas poesias casimirianas, analisa-as dentro de sua ótica semântico-estilística e compara o enfoque de Casimiro com o de outros poetas românticos, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Fagundes Varela. Na segunda Pedrinha mergulha (ele gostava deste verbo) na prosa e na poesia de Casimiro de Abreu para concluir, em face de dúvidas de alguns estudiosos do poeta, que “o berço do inspirado cantor das Primaveras” é Barra de S. João. Para concluir, quero retomar um traço muitas vezes lembrado da personalidade de Alvacyr Pedrinha: a religiosidade. As orações do avô Domício e a intervenção providencial de Alceu Amoroso Lima frutificaram. Pedrinha tornou-se um homem profundamente religioso. Aliás, quem, sem conhecê-lo, ler a tese não terá dúvidas. O tom bíblico está presente desde a dedicatória ao avô Domício Martins da Silva: “Fidelis servus et prudens quem constituit dominus super familiam suam, ut det illis in tempore tritici mensuram.” – passagem de S. Lucas, 12, 42, e communio da missa de S. Francisco de Assis: “Eis o servo fiel e prudente que o Senhor pôs à frente de sua família, para dar a cada um o pão, a seu tempo.” (Pensei até em abrir este discurso com a mesma citação, que, afinal, caberia também ao Pedrinha.) Na Introdução da tese outra epígrafe bíblica, esta de S. João, muito conhecida: “In principio erat verbum et verbum erat apud Deum, et Deus erat verbum” – para frisar a fundamentalidade da palavra, também presente nos versos de Murilo Mendes transcritos abaixo daquela epígrafe:“A palavra nasce-me/ fere-me / mata-me/ coisa-me / ressuscita-me.”Católico, Pedrinha tendia para uma visão ecumênica, menos ortodoxa. Comparecia com freqüência às grandes solenidades religiosas de seus “irmãos judeus”, como dizia. Ouvia assiduamente cantos gregorianos; incensava a casa com o incenso do Mosteiro de S. Bento; repetia em casa e com a família reunida rituais da Semana Santa e do Natal… O certo é que Pedrinha não queria um Cristo aprisionado, cravado na cruz e escarnecido, como diz o lindo poema de Santa Teresa de Ávila. Gostava da imagem do Cristo de braços abertos para o Alto, para a Glória. Lembro-me bem do que me disse horas antes da operação de safena. Pedrinha me telefonou de S. Paulo. Quando lhe perguntei se estava com medo, ele me respondeu sem titubear: “Não tenho medo de morrer. Vou de peito aberto para o Senhor!” Naquele tempo conversávamos muito sobre o problema da morte. Um dia Pedrinha me disse que a leitura de A vida depois da morte, do então Frei Leonardo Boff, o reconciliara com ela e lhe dera a visão de que estava precisando. Ultimamente andava entusiasmado, vibrando sempre, com algumas leituras que afinavam com posições ideológicas que defendia e que o levavam a denunciar a exploração do homem pelo homem, a falta de oportunidades para as classes menos favorecidas, o cinismo do discurso oficial em chocante contraste com a realidade. Lia e relia aquela história da galinha e da águia “de um educador e líder político da pequena república de Gana, na África Ocidental, James Aggrey (†1927)” 5, que serve de motivação a Leonardo Boff em dois livros recentes. A história termina assim: “Irmãos e irmãs, meus compatriotas: Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. E muitos de nós ainda acham que somos efetivamente galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, companheiros e companheiras, abramos as asas e voemos. Voemos como as águias. Jamais nos contentemos com os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar.” 6 Esse era o pensamento e a conduta do querido Amigo e Acadêmico Alvacyr Pedrinha, águia, sempre águia, que no dia 9 de novembro de 1998, aos 79 anos, também ao alvorecer, voou corajosamente de peito aberto para o Senhor.

Após a saudação do Prof. Rosalvo do Valle, O Prof. Leodegário recordou o longo convívio acadêmico e de amizade fraterna com o homenageado, lembrando o fato de ter sido convidado para um almoço preparado por ALVACYR PEDRINHA. O Prof. Malveira, comovido, fez uma pequena oração em homenagem a Pedrinha, lembrando que o homenageado sempre se referia à sua terra natal com muito entusiasmo. Também o Prof. Evanildo Bechara exaltou o trabalho do acadêmico, com quem trabalhou em diversas ocasiões. A seguir, o acadêmico Paulo Silva de Araújo proferiu o seguinte discurso em homenagem à memória de Vittorio Bergo: “Saiu o semeador a semear. E, semeando, caiu parte das sementes à beira do caminho. Vieram os pássaros do céu e avidamente as comeram. Outra parcela deu em solo pedregoso, onde se via pouca terra, e logo rebentaram os grãos, por falir terreno fundo. Ardendo o sol, contudo, queimou-os e, carentes de raízes, feneceram. Nova partícula ficou por entre espinhos que, medrando, a sufocaram. A porciúncula restante, lançou-a o semeador a terra boa, e as sementes prosperaram. Eis o Divino Galileu e a parábola. Egrégio Senhor Presidente, Dr. Leodegário de Azevedo Filho, insignes companheiros acadêmicos, distinta família, amigos e admiradores de Vittorio Bergo: As gerações que se sucedem, no tempo e no espaço, formam o campo da intérmina semeadura do Semeador Eterno. Aí se acham sempre indesejados ou maléficos segmentos para a sementeira pródiga deífica. No entanto - ainda bem ! - existem regiões fecundas para o tranqüilo abotoar das sementes. Um desses terrenos férteis, onde se deitou um pugilo de sementes, meus ouvintes, foste tu, Vittorio Bergo aqui presente por evocação de nosso afeto. A cordialidade magnética desta comemoração jamais deixaria de trazer-te para este momento de festa da saudade. Sem dúvida, falassem na minha vez acadêmicos mais antigos, narrariam passos inolvidáveis ou singulares do convívio, cá e fora, entre si e a tua cândida pessoa. No tangente ao orador, conheci-te por telefone um quinqüênio faz. Fui eu quem te procurou, a fim de comunicar que muito te devia pelas magníficas lições hauridas em teus livros e me regozijava naquele instante em relacionar-me contigo ao menos pela via elétrica e tua voz direta. Era só por isso - completei. Foste amoroso na réplica. Além de mais, noticiaste-me que te ocupavas em trabalho referente à bíblia como fonte literária. Rode, então, o circuito da existência, move-se o rodízio da vida. Conquisto anos após, com duas obras, os prêmios nacionais de Oratória e de Literatura conferidos pela Academia Brasileira de Letras. Vou ao Mestre Vittorio Bergo e lhe peço a mercê de um prefácio. Testemunha o encontro sua ilustre filha, Professora Nerilda Bergo, atual Secretária de Educação e Cultura de Mendes, componente do auditório. Lida e analisada a obra, entrega-me o volume com o prólogo solicitado. Que prefácio rico e esplêndido! Quanto me alegrou e me alegra! Passamos a familiares, e eu a visitá-lo. Palestrávamos às longas, sobretudo acerca de, nas ciências do Mestre, gente famosa, problemas e ocorridos notáveis. Gostava ele também de conversarmos em assuntos helênicos e romanos, a respeito de grego e de latim. Valho-me da hora enfática, Vittorio, para render-te graças em tão formosa homenagem, esta que o orgão dos filólogos ora te consagra. Acrescento-me ao idêntico orador que te louvou na tribuna eclesiástica presbiteriana de Copacabana, local indicativo de tua alma religiosa e em cuja nave celebramos os teus noventa anos. Como lingüista e filólogo, admirei-te visceralmente, admiramos-te, pelo robusto, grave e sólido tratadista que te caracterizava. Tua figura, tua figura, membro do Círculo Linguístico do Rio de Janeiro e da Academia Brasileira de Filologia, era, decano, plena e cheia de nosso respeito e de tua dignidade. Todos te saudavam reverentes. Compartias da rutilante grei, a qual a boa fortuna deparou a este augusto ateneu: Padre Magne, Serafim Neto, Sílvio Elia, Antônio Houaiass, Mattoso Câmara, Antenor Nascentes, Ismael Coutinho, para citar apenas uns, mortos. Mero lance d'olhos, audientes, à sua bibliografia. Vittorio escreveu vinte e seis livros, dois já publicados e catorze por publicar. Saliento destes e daqueles alguns, por óbvio. Publicados: Consultor da Gramática e de Estilística de Machado de Assis, A Linguagem Figurada nos Clássicos e nos Modernos, Regência Nominal e Verbal em Machado de Assis, A Bíblia como Fonte Literária, Hierarquia de Valores na Concordância de Verbo SER, Origem e Evolução do Vocabulário Religioso. "O Mundo Português" de quando a quando estampava belos artigos da caneta privilegiada de Vittorio. Leitor dessa folha, deliciava-me e aprendia em face das irretocáveis composições. Vittorio, os sócios, nós todos, sentimo-nos penetrados de comoção se nos lembramos de tua humildade, quase orgulhosa, e de teu porte cristianíssimo. Patriota e civil de fé, honraste a nação brasileira, a cultura nativa e outrossim a piedosa sociedade mística urbana, mineira e carioca. Ensombra-nos o coração a ausência de tua presença f'ísica. Conforta-nos porém a certeza de que, no alto, estás com Deus. A eviternidade perpetuou o teu diploma de imortal acadêmico. A tua pureza, as virtudes, que nunca renunciaste, afiançam que no "dies irae", no dilúculo do juízo máximo , te contarás na legião dos eleitos, à direita do Rei de Glória, que triunfante exclamará: "Vinde, benditos de meu Pai, entrai na posse do reino que vos está preparando desde o começo do mundo!" "Venite, benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum a constitutiona mundi!" "Deüte hoi eulogeménoi toü patrós mou, cleronomésate tèn hetoimasménem hymin basileían apò cataboles cósmou!" Nossas lágrimas íntimas, Amigo! “ Após a saudação do Prof. Paulo Silva de Araújo, o Prof. Leodegário fez diversas considerações sobre o homenageado, realçando o seu magnífico empenho em prol do ensino de língua portuguesa. Como não houvesse mais nada a tratar, foi encerrada a sessão. Para constar, lavrei a presente ata, que vai assinada pelo Senhor Presidente e por mim, Segundo Secretário.


Notas:


1.    Discurso publicado, com o título Da atualidade de um discurso, em ASPI/UFF, Boletim Informativo da Associação dos Professores Inativos da Universidade Federal Fluminense, julho, 1997, ano V , nº 5.

2.    SILVA, Maximiano de Carvalho e. Homenagem a Pedrinha – nosso amigo Alvacyr. ASPI/UFF, Boletim Informativo da Associação dos Professores Inativos da Universidade Federal Fluminense, dezembro, 1998, ano VI, nº 10.

3.    PEDRINHA, Alvacyr. Conexão lusofônica Angola-Brasil, conferência lida no V Congresso da Associação Latino-Americana de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, Rio, agosto de 1995 (informação que recebi da Profª Drª. Laura Cavalcanti Padilha, a quem agradeço).

4.    PEDRINHA, Alvacyr. A letra do Hino Nacional Brasileiro. 

5.    BOFF, Leonardo. O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Petrópolis: Vozes, 1998, p.40.

6.    Id., Ibid.. p. 42.

 

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