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ATA DA SESSÃO SOLENE DE HOMENAGEM PÓSTUMA AOS ACADÊMICOS OLMAR GUTERRES DA SILVEIRA e ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA, EM 21 DE AGOSTO DE 1999

 

Aos vinte e um dias do mês de agosto do ano de mil novecentos e noventa e nove, às 15h30min, na Rua Francisco Xavier, 524, Maracanã, no auditório RAV 112, do Instituto de Letras da UERJ, realizou-se a sessão de homenagem póstuma aos acadêmicos Olmar Guterres da Silveira e Antônio Geraldo da Cunha. Aberta a sessão , foi aprovada a ata da sessão de 19.6.99, e o Sr. Presidente informou- que o acadêmico Jayr Calhau, que se encontra acamado, mandava um abraço para todos. Foi dada a palavra ao acadêmico Horácio Rolim de Freitas, que, em eloqüente discurso, relembrou a alta relevância nos meios lingüísticos e filológicos do Prof. Emérito Olmar Guterres da Silva. Transcreve-se, na íntegra, a fala do Prof. Horácio: “Senhor Presidente da Academia Brasileira de Filologia, Professor LEODEGÁRIO AMARANTE DE AZEVEDO FILHO, Ilustres Acadêmicos, Prezados Parentes do homenageado, Minhas senhoras e Meus senhores! Sempre se constituiu em momento de enlevo e alegria falar do Mestre e amigo, Prof. Olmar Guterres da Silveira. Hoje, saudoso por sua partida, devo prestar-lhe esta homenagem, ato que nunca pensei acontecer, esperançoso de que o Mestre chegasse a nonagenário. Quis Deus chamá-lo tão cedo, para tê-lo junto a Si, alma iluminada que retorna à morada divina. Olmar Guterres da Silveira deixou uma lição de vida e de amor em todos que usufruíram sua cultura, seus ensinamentos sempre claros e precisos, não apenas alunos e ex-alunos, mas os próprios colegas ouviam-no para dirimir dúvidas. Mestre como poucos, dominava as línguas portuguesa e latina, não descurando da Filologia, da Sociolingüística, do grego, das línguas românicas e do alemão. Em todos os campos da cultura lingüística, objetos de suas pesquisas sob aquilatado senso crítico, deixou marca indelével. É o que ocorreu, por exemplo, nos campos morfológico e sintático. Quando gramáticos procuravam explicação plausível para melhor entendimento do emprego de pronomes ditos relativos e de alguns advérbios, por não apresentarem um termo antecedente, o Mestre esclarecia, definitivamente, em sua tese, que a subordinação de orações não se processa apenas por conexão. Trabalho este que o deixa bem distante de estudos preliminares tratados por autores nacionais e estrangeiros, como: Said Ali, José Oiticica, Sílvio Elia, Ernout-Tomás, Sechehaye. Como filólogo deu-nos um erudito comentário do Canto V de Os Lusíadas, edição da Biblioteca do Exército. Não menos ricos são seus comentários à fábula de Fedro e à 1.ª Sátira de Horácio. Sob visão sociolingüística produziu a Carta aberta a um Grande Mestre, dedicada a Sílvio Elia, onde faz brilhantes observações a propósito de bilingüismo e diglossia e, de passagem, tece comentários sobre a transcrição do grego clássico e do grego moderno. Sempre em dia com os mais atualizados estudos, sabia, de maneira ímpar, selecionar o que era exeqüível de aplicação à língua do que era pura abstração no campo teórico. Absorveu as idéias dos mais eminentes lingüistas, dentre os quais estão: Eugenio Coseriu, Bernard Pottier, Henri Frei, Francis Mikus, para só citar alguns de uma ampla galeria. Mas o Prof. Olmar não se absteve dos autores nacionais, dignos de ombrearem-se com qualquer autor estrangeiro. Compulsava-os, citava-os e orientava os alunos a lê-los: um Said Ali, Sousa da Silveira, Evanildo Bechara, Sílvio Elia, José Oiticica, Serafim da Silva Neto e tantos outros. Seguindo a trajetória dos grandes mestres, não os repetia, criava. Em cada lição de suas obras, pode-se constatar o dedo do gigante, contribuição essa tão bem assinalada pela arguta percepção do Prof. Sílvio Elia que aqui repito: “Para enriquecimento da cultura brasileira, emerge de corpo inteiro a figura magnífica do filólogo, forrado de acabada formação lingüística, do mestre da língua, do latinista, do homem de saber e experiência feito”. Deu a lume edição da Gramática de Fernão de Oliveira, cópia microfilmada do exemplar da Biblioteca Nacional de Lisboa, texto de 1536. Ali, nomeia as fontes de autores latinos, gregos, portugueses utilizados pelo nosso primeiro gramático, além do famoso Antônio Nebrija. As apreciações críticas feitas a passagens dessa obra, no campo fônico e no campo morfológico, constituem uma amostra do apurado senso crítico e analítico que possuía o grande Mestre. Outras edições anteriores teve a obra de Fernão de Oliveira. A 2ª edição, data de 1871. Em 1933, sai a 3ª edição. A imprensa Nacional - Casa da Moeda edita a 4ª edição, em 1975. Essas três edições foram feitas em Portugal. No Brasil, o Prof. Olmar Guterres da Silveira tomou a si essa responsabilidade, publicando, em 1954, a tese A “Gramática” de Fernão D’Oliveyra. A importância dessa edição, pelo texto fidedigno, pelas fontes apresentadas e pelos comentários de alta competência lingüística mereceu a escolha do eminente lingüista, Eugenio Coseriu, que nela se baseou para a composição de sua obra: Língua e Funcionalidade em Fernão de Oliveira. Olmar Guterres da Silveira deixou, além de vários estudos, teses e artigos sobre as línguas portuguesa e latina, lições sobre o ensino do idioma nos graus médio e universitário, palestras proferidas em várias universidades, discursos, crônicas, prefácios, traduções e poesias. Destaco, aqui, duas conferências: sobre Sousa da Silveira, proferida na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, em que demonstra domínio da Lingüística Textual; e outra sobre Antenor Nascentes, realizada nesta Universidade. Lecionou no Colégio Pedro II por 44 anos. Regeu interinamente a Cátedra de Latim. Prestou concurso para a Cadeira de Língua Portuguesa com a brilhante tese A Grammatica de Fernão d’Oliveyra, em 1954. Na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal, que se tornaria a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), obteve os títulos de Livre-Docente e Doutor em Letras, com a tese Orações Subordinadas sem Conectivo. Nesta Universidade foi o primeiro assistente do Dr. Clóvis Monteiro, cuja obra ainda hoje se destaca pela atualização e pelo cientificismo do grande filólogo. Em 1962, o Prof. Olmar mais uma vez se submete a concurso público e obtém a Cátedra de Língua Portuguesa da Universidade do Estado da Guanabara, hoje UERJ, com a tese Prefixos e Não-Prefixos Portugueses. Por 30 (trinta) anos exerceu a Cátedra com proficiência e dedicação ao ensino e ao idioma. Imprimindo uma linha filológica, iniciada por seu antecessor, Dr. Clóvis Monteiro, descortinou os horizontes da Filologia, formando professores que, através de suas aulas, e da equipe por ele escolhida a dedo, se familiarizaram com a obra dos mais produtivos e competentes filólogos, base indispensável para o domínio da língua portuguesa, como: Said Ali, Antenor Nascentes, Augusto Magne, Mário Barreto, Leite de Vasconcelos, Carolina de Michaelis, entre muitos outros. Mestre como poucos, Olmar Guterres da Silveira, ou na expressão carinhosa usada pelo Prof. Bechara: “o nosso Olmar”, dirigia os alunos para a pesquisa, leitura atenta das obras indicadas cujos temas eram discutidos com senso crítico e perspicácia. Infelizmente, ao chegar aos 70 (setenta) anos, em 1992, teve de afastar-se pela compulsória. Deveria substituí-lo, de fato e de direito, outro ex-assistente de Clóvis Monteiro, o Prof. Jairo Dias de Carvalho, cuja competência e dedicação ao trabalho eram notórias. Quis o destino que o Prof. Jairo se abstivesse das atividades acadêmicas, solicitando aposentadoria. A Cátedra ficou acéfala. A linha filológica de Clóvis Monteiro e Olmar Guterres da Silveira se extinguiu. A vaga poderá ser preenchida, mas não a Cátedra. Não há, em minha geração, ninguém à altura do valor intelectual do Prof. Olmar Guterres da Silveira. Contudo, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro não desmereceu o mestre ilustre, concedeu-lhe o título de Professor Emérito. O Mestre amigo. Vim a conhecer o Prof. Olmar no Curso de Mestrado da Universidade Federal Fluminense. Da 1ª turma de pós-graduação ali formada fazíamos parte eu, Jayr Calhau, Walmírio Macedo, Manoel Pinto Ribeiro, Castelar de Carvalho, dentre outros, que tivemos a dádiva de receber os ensinamentos do Mestre. Sentindo-nos seguros, capazes, sob tão eficientes orientações de Olmar Guterres da Silveira, Evanildo Bechara, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo e Jesus de Belo Galvão, arvoramo-nos a conquista mais alta. Iniciou-a Walmírio Macedo, submetendo-se a concurso público de provas e títulos na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a primeira a cumprir a lei que possibilitava a obtenção dos títulos de Livre-Docente e Doutor em Letras. Também lá estivemos eu e Jayr Calhau. Nas aulas do Prof. Olmar surgiu o tema que ficou a martelar-me a cabeça: o processo de derivação na língua portuguesa. Desenvolvi o novelo de idéias, dei-lhe forma e nasceu a tese com que me submeti àquele concurso. Sempre incentivado pelos Mestres, Prof. Olmar e Prof. Bechara, apurei o trabalho, ampliei-o e publiquei-o. Princípios de Morfologia mereceu do Mestre o que mais prezo na obra: o prefácio. Fê-lo o Prof. Olmar com medidas palavras, mas sempre precisas e sinceras. Não era de seu feitio abusar de elogios. Um adjetivo positivo já valia como tal. Tive o privilégio de ter no Mestre um amigo. Privei de sua amizade e da amizade de sua dulcíssima esposa. Nosso convívio era constante: pessoalmente, por telefonemas ou por escritos, às vezes cartas em latim. Numa dessas correspondências tive a oportunidade de destacar uma de suas virtudes: “Simplicitas est hominum sapientissimorum” (A simplicidade é própria dos homens mais sábios). Devo-lhe a indicação de meu nome para ocupar uma cadeira nesta egrégia Academia. Entre agradecido e admirado, temi tornar-me candidato. Estaria sentado ao lado de meus Mestres: Olmar, Bechara, Sílvio Elia, Jesus. Era uma subida honra. Jayr Calhau convenceu-me. Fui recebido nesta Casa pelo Prof. Olmar que descreveu minha vida no magistério no ensino das línguas portuguesa e latina. Foi um momento de enlevação. Conhecedor de seus escritos: artigos, conferências, algumas teses, procurei defrontar-me com os trabalhos inéditos. Aí tive grande ajuda da Dra. Renée. A modéstia, a simplicidade, que marcavam seu caráter, faziam o Mestre protelar a entrega da obra solicitada. Mas o discípulo era insistente e o Mestre, então, acedia, não sem deixar uma palavra como dedicatória e, às vezes, até em verso. Foi o que ocorreu quando dele recebi o exemplar tão esperado da tese Orações Subordinadas sem Conectivo com a seguinte dedicatória: “É teimoso o meu amigo !...Pede ... insiste ... até consegue (apesar do que lhe digo) que eu abra mão da firmeza de silêncio, a que me obrigo, e parlapatescamente aqui lhe traga, comigo, o envelhecido exemplar da tese que apresentei para me candidatar à Docência primeira que houve por bem instaurar a UERJ daquele tempo. E para não molestar os seus ouvidos, Horácio, com tantas rimas em -ar, prometo-lhe: vão cessar; e você há de gostar da calma crepuscular que, finalmente, restar... Aceite o abraço do Olmar.” (13/8/87) Era preciso que sua obra esparsa fosse reunida e publicada. Cada página escrita pelo Mestre é motivo de reflexão, conduz o estudioso à pesquisa, abre novos caminhos. Alguém deveria tomar a si essa tarefa. Propus-me a fazê-lo. Iniciei o trabalho com denodo e jamais esmoreci durante os seis anos de pesquisa. Em muitas ocasiões, tive a ajuda de D. Renée, pois, como bem observou Sílvio Elia “Por estranho que possa parecer, o maior obstáculo foi o próprio homenageado. É que, abrigando-se atrás do que chamaria “idiossincrático pudor intelectual”, diz-nos Sílvio Elia, “Olmar quase que segregava sua produção científica”. Em 1992, concluí a organização de sua obra. Veio a 2ª fase. Submeti-a a várias editoras. Pelo tamanho da obra, pelos textos latinos e transcrições em grego e possivelmente, também, pelo desconhecimento de seu valor científico, a resposta era uma gentil desculpa. Passaram-se três anos. Eis que outro ex-aluno do Prof. Olmar, nosso colega e amigo, Prof. Manoel Pinto Ribeiro, com experiência em editoração, veio em nosso auxílio. Renovou-se o alento. Sem medir esforços, Manoel Ribeiro movimentou colegas, amigos, alunos, no afã de imprimir a obra do Mestre. Em 1996, a obra completa do Prof. Olmar estava impressa em livro, enriquecendo o acervo de nossa cultura lingüístico-filológica. Nosso dever estava cumprido. O Mestre, feliz, autografou os inúmeros exemplares. A noite de autógrafos foi uma festa. Culminou com as palavras do Prof. Sílvio Elia ao traçar o perfil do homem, do chefe de família, do professor, do latinista e do filólogo. Momento inesquecível! A obra está aí para quantos queiram abeberar-se da fonte inesgotável de saber. É de leitura agradável, apesar da erudição e do caráter científico, pois, como bem a retratou o Prof. Manoel Pinto Ribeiro em apreciação que consta da capa do livro: “O estilo é claro, conciso, soante, próprio de quem se preocupa em lapidar cada frase, cada pensamento. O Prof. Olmar impregna seu trabalho de toda a pujança de nosso idioma”. Olmar Guterres da Silveira pertenceu a várias entidades culturais. Membro fundador da Sociedade de Romanistas, da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura, do Círculo Lingüístico do Rio de Janeiro, da Academia de Letras do Rio de Janeiro. Na Academia Brasileira de Filologia, ocupou a cadeira número 35 que tem por Patrono Amadeu Amaral. Sua imagem, sua bondade, sua grandeza de virtudes estarão não só nos corações de seus familiares: da esposa, Dra. Renée, de sua irmã, D. Dirce Santos, dos filhos, Vera Lúcia e Paulo César, dos netos, Guilherme, Renata, Anna Paula e Anna Letícia, mas também no coração dos amigos e dos confrades. Ao finalizar esta homenagem, faço minhas as palavras de Cícero: “Haec vita est sua, quae vigebit memoria hominum omnium quam posteritas alet, quam ipsa aeternitas semper tuebitur”. (Esta é a sua vida que viverá na lembrança de todas as pessoas, que a posteridade sustentará e que a própria eternidade defenderá”.) O homem passa, mas a obra e o exemplo de caráter permanecem. Olmar Guterres da Silveira não apenas dignificou a Filologia e a Lingüística, dignificou o ser humano. Olmar Guterres da Silveira, immortalis es! Após o discurso do Prof. Horácio, O Prof. Leodegário relembrou a longa convivência com o Mestre Olmar, procurando salientar os principais enfoques contidos na oração do Prof. Horácio. Também o Prof. Bechara mostrou a excepcional importância do Prof. Olmar no mundo acadêmico. O Prof. Manoel Pinto Ribeiro também se expressou, dizendo: “Em meu nome, de minha esposa e de meus filhos, quero, neste momento solene, expressar não apenas nossos agradecimentos mas sim uma profunda gratidão pelo que nos proporcionou o Prof. Olmar Guterres da Silveira, num convívio de quatro décadas. A OBRA DO PROFESSOR OLMAR GUTERRES DASILVEIRA, editada graças o esforço e ao interesse pela cultura deste notável companheiro, o Prof. Horácio Rolim de Freitas, nos dá a dimensão do lingüista e do filólogo, sempre pronto a atender a uma consulta de alunos e professores. Mestre e conselheiro em todos os momentos de nossa vida acadêmica, o Prof. Emérito Dr. Olmar Guterres da Silveira inscreveu seu nome na história da cultura brasileira. Estas homenagens se estendem obviamente à Drª Renée Amaral da Silveira, que o acompanhou por mais de cinqüenta anos, proporcionando ao Mestre uma vida plena de alegria e de sucesso. Fica o nosso muito obrigado por nos terem ajudado a crescer.” A seguir, o Prof. Manoel ofereceu um ramo de flores à Drª Renée, que, muito emocionada, não quis usar da palavra. Em seguida, o Prof. Antônio Martins de Araújo fez o seguinte discurso em homenagem a Antônio Geraldo da Cunha: “Vou falar-vos de alguém que desafiou o tempo e derrotará o olvido. Antônio Geraldo da Cunha era daquela estirpe de pessoas que, sem descurar das obrigações profissionais, punha a família acima de tudo na vida. Sem violentar sua individualidade, ele era, perfeita e plenamente, pessoa, no sentido extensivo etimológico do termo. Do latim per, que quer dizer através, por meio de, e sona, de sonare, soar, falar, comunicar-se. Não no sentido estrito de máscara de ator, ou personagem do drama, mas no de personalidade que se abre para o outro. Escudado na amizade que eu lhe tinha e dando larga a meu gênio desabusado e extrovertido, quantas vezes lhe perguntei pela valiosa presença a nossas reuniões acadêmicas, e ele, sério e compenetrado, me respondia: - Não posso, Martins. Amanhã vou para casa de meu filho em Volta Redonda. O filho era o doutor Nelson Geraldo, que, além da introspecção, lhe herdou o nome; a razão escondida era a alegria sem preço de rever, além do filho e da nora Eliane, as três netinhas, que, em sendo netas, são duas vezes filhas: Maria Fernanda, Luciana e Mariana – todas, de sobrenome – Costa da Cunha. Ano passado, num dos auditórios desta mesma casa, em um Congresso de Filologia dos que anualmente aqui se realizam, tivemos o prazer de escutá-lo falar do projeto de um de seus dicionários em andamento. Na oportunidade, abriu um parêntese para confiar-nos um episódio que lhes dirá muito bem da personalidade de que vos falo. Perguntou-lhe certa vez uma de suas cinco netas o que queria dizer determinado palavrão que escutara no colégio ou pela rua. Dividido pelo dilema entre dizer a verdade do dicionarista respeitado e pelo amor de carinhoso avô, respondeu-lhe conciliando o dilema. Disse-lhe o que pôde do significado pedido, mas recomendou-lhe que, sendo menina bem educada, não o pronunciasse nunca na presença de ninguém. Assim, ninguém precisava abrir dicionário em sua residência. Era só perguntar-lhe, e lá vinham, inteirinhos, os vários sentidos dos termos perguntados. Já nestes últimos dias, embaraçada com um esquisito termo científico escutado do professor no colégio, lamentava Priscila não ter mais disponível a seu alcance seu dicionário preferido e vivo, para lhe esclarecer o sentido do termo. Seu dicionário vivo e preferido se fora para sempre na noite daquela terrível quinta-feira, dia 8 de julho passado. Como sempre fazia, Cunha chegava a casa de noitinha, tomava seu banho, jantava, e, imediatamente, ia para o escritório cumprir a terceira etapa de seu prolífico dia de trabalho. Isso, sem um “Cooper”, por mais curto que fosse; e sem um jornal nacional, para se acercar das notícias do dia, como fazem os mais desobrigados. Tinha sempre muito que fazer no princípio de suas noites. Talvez porque tivesse sede, talvez por que precisasse de uma pausa na ingente tarefa, pretextou ir até à cozinha beber um gole d’água. Como de hábito, sempre pensando no outro, quando pensava em si mesmo, passou pela sala e perguntou à esposa dileta com voz grave de quem fumou durante muitos anos: – Nildes, você quer água? / – Não, obrigada, respondeu-lhe ela. E lá na copa demorou-se algum tempo. De repente, um baque surdo, e o barulho de um copo de vidro que se estilhaçou no chão. Antônio Geraldo estava, imóvel, deitado no chão. No rosto, nenhum ríctus de dor, nem de revolta. Sereno e plácido, como serena e plácida fora toda sua existência ao lado daqueles que tanto amou e por quem viveu toda uma existência. Serenidade e placidez de um espiritualista e cristão, que ele soube transmitir para os entes queridos. Até nesse momento mais amargo de suas vidas, eles também eram a própria serenidade e placidez. Além dos anos de namoro e noivado, Cunha (assim eu o chamava) viveu mais de quarenta e nove anos de uma vida exemplar ao lado da esposa amantíssima, dona Nildes Silva da Cunha. Agora em setembro o clã dos Cunhas comemoraria as bodas de ouro do casal. Desse consórcio, além do dr. Nélson Geraldo, tiveram também uma filha – Catarina Maria –, que, com o genro Roberto, lhe deu outras duas netas: Priscila e Roberta – ambas, de sobrenomes – da Cunha Moreno Lopez. Quando em julho de 1964, com a numerosa família, estabeleci domicílio nesta capital, sem que soubéssemos, éramos quase vizinhos na rua Maranhão. Morava eu no lado par, na casa número 416; e ele no ímpar, na casa 81. Também sem que eu o soubesse, fora o engenheiro arquiteto Antônio Geraldo da Cunha quem calculara e construíra o Hospital Carmela Dutra, na rua Aquidabã, onde viria à luz nossa única filha carioca em 1965, a professora Cláudia Regina. Nos anos 50, ao fim dos quais iniciei o exercício do magistério superior na antiga Faculdade de Filosofia São Luís, tive o ensejo de conhecer-lhe os primeiros trabalhos científicos sobre eslavística. Para mim, à época, afigurou-se Cunha essa espécie rara entre nós, o único eslavista de que eu tinha notícia. Eram trabalhos sobre os empréstimos eslávicos ao português, publicados pela Revista de Portugal, de Lisboa; e os vários artigos seus publicados pela Revista da Academia Fluminense de Letras, hoje raros. Em São Luís, também a duras penas, obtive de amigos aqui residentes, os dois primeiros títulos do projeto do Dicionário da Língua Portuguesa – textos e vocabulários, sob sua cuidadosa coordenação. Sob a chancela do Instituto Nacional do Livro, chegaram a onze os títulos publicados. Em São Luís, também consegui penosamente as judiciosas correções que fez à datação do Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, do arabista lusitano José Pedro Machado, correções essas anteriores às do mestre galego Ramon Lorenzo. Dois dos outros onze títulos da série do INL, li-os e reli-os quando morava já quase defronte do Cunha, na rua Maranhão: o Tratado da província do Brasil, de Gândavo, sob os cuidados do saudoso colega Emanuel Pereira Filho; e as Coisas notáveis do Brasil, v. 1, sob os cuidados do próprio coordenador da série, A.G. Cunha, como ele assinava à época seus trabalhos. Enfim conhecemo-nos pessoalmente no antigo Serviço Nacional de Teatro, quando ele procedia à edição atualizadora de todo o teatro de Joaquim Manuel de Macedo, e eu a de Artur Azevedo. Já com os dois primeiros tomos publicados na época, e os originais de todos os demais tomos revistos e entregues ao S. N. T. procuraram ali por todos os meios, alguns inconfessáveis, substituir-me na editoração dos originais de Artur Azevedo. Aí, conheci a estatura moral e ética de Antônio Geraldo. Por ser um dos mais respeitados editores críticos de textos antigos e contemporâneos do país, foi chamado pela direção da casa a opinar sobre meu trabalho, na esperança de que ele acharia qualquer motivo para me alijar da empresa. Cunha não era capaz de qualquer injustiça consciente, nem homem capaz de apunhalar alguém pelas costas. Após examiná-lo, comunicou-me o fato e limitou-se a dizer-lhes que meu trabalho estava irrepreensível, e o recomendava à publicação. Só assim pude concluir a revisão das 3.600 páginas, já em fase de publicação, do teatro do conterrâneo ilustre. Certa vez, como empedernido maranhense, mostrei-lhe curiosidade em ver o texto do Noticiário Maranhense / Descripção do Estado do Maranhão, / suas contendas e peregrinas circunstâncias, de 1685, do padre João de Souza Ferreira. O manuscrito pertencera ao bibliófilo francês Dr. J. J. Renoux, que lhe permitiu a microfilmagem. Cunha não só me mostrou o microfilme, mas me deu de presente uma cópia xerox de todo o texto. Graças a esse gesto de despreendimento, pôde minha orientanda de Mestrado em Filologia Românica na UFRJ, professora Carla Penha Bernardo, arrebatar a nota de excelente na defesa de sua dissertação em 1994. Não direi de quão valioso foi seu silencioso trabalho, à frente da compilação do Índice do vocabulário de Os Lusíadas, nem do das Rimas, de Luís Vaz de Camões. Muitos ensaístas lusitanos e brasileiros, sem citar a fonte, os acharam tão rapidamente opulentar seus trabalhos com os verbos do grande poeta português. Não poderei, porém, silenciar três alegrias minhas. A alegria de saber que, finalmente, a Nova Fronteira está disposta a editar, embora com pequenas alterações ao projeto inicial, seu tão esperado Dicionário de verbos do Português contemporâneo, obra ímpar na espécie em nossa bibliografia. A alegria de saber que a Fundação Casa de Rui Barbosa reagrupou especialistas para editar finalmente as 170.000 fichas do seu tão sonhado Vocabulário do Português Medieval, empresa que nem em Portugal se ousou realizar. E a alegria de saber que a Editora Melhoramentos já mandou para o prelo, sensivelmente aumentada por Cunha, seu singular e prestimoso Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi, tão variadas e numerosas são as suas abonações para cada lema, que esse dicionário de autoridades tornou-se sem similar em nossa lexicografia. É pena que o saudoso Cunha nos haja deixado sem ter tido a alegria de ver editados dois dicionários brasileiros importantes, aos quais, de modo diverso, emprestou sua discreta colaboração. Não verá, o mais tardar até dezembro próximo, a 3º edição, ampliada e revista, do Dicionário da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, onde com Diógenes de Almeida Campos, trabalhou por cinco breves meses sob a coordenação geral do acadêmico Walmírio Macedo. Não verá também, em agosto do ano 2000, o tão esperado lançamento do Dicionário Houaiss, hoje operado por numerosa equipe, sob a direção de Mauro Salles Villar, com os prometidos 300.000 verbetes afro-luso-brasileiros da língua portuguesa, dos quais vinha diligentemente preparando aparato etimológico e datação. Mas que fazer contra os desígnios divinos? Enquanto este esteve conosco, Cunha realizou todos os seus sonhos. Construí essa bela família, elaborou suas obras duradouras, praticou a justiça, a sabedoria e a bondade entre todos nós. Por muitos e muitos anos, a cada reedição de seus índices e dicionários; a cada gesto seu, de homem de bem, que for relembrado pela esposa, pelos filhos e netas, pelos amigos e acadêmicos, pelos alunos e admiradores – seu nome será lembrado. Ele foi bom, foi sábio, foi justo, e amou a vida. A glória dos humanos é efêmera e enganosa. A de Deus, eterna e transcendente. Que Deus o receba em sua glória para sempre.” Encerrada a fala do Prof. Antônio Martins, o Prof. Leodegário lembrou o papel do grande lexicógrafo que, sem dúvida, deixa uma lacuna muito séria, principalmente no trabalho de datação dos vocábulos. Usando da palavra o Prof. Manoel Pinto Ribeiro assim se expressou: “Prezada Srª Nildes, filhos e amigos do Prof. Antônio Geraldo da Cunha: Apesar de conhecer o Prof. A.G. Cunha há apenas cincoanos, tivemos por ele uma grande amizade e um respeito incomum pelo que representa na história da filologia brasileira. Em conversas filológicas, o mestre sempre se prontificou a nos ajudar em qualquer tarefa no campo lexicogáfico. Perdemos um amigo e um pesquisador incansável que respondia com extrema facilidade a muitas questões que os livros não registram. Nosso respeito e gratidão pela constante ajuda nos propiciou.” A seguir, o Prof. Manoel ofertou um ramo de flores a D. Nildes Silva da Cunha, viúva do homenageado. Nélson Silva da Cunha, filho do Prof. Cunha, agradeceu em nome da família as homenagens que a Academia prestava a seu pai. Pelo estatuto da Academia, declaram-se abertas, após esta cerimômia, as vagas das cadeiras 35, patrono Amadeu Amaral, e 36, patrono Laudelino Freire. E, nada mais havendo a tratar, o Sr. Presidente deu por encerrada a sessão. E, para constar, lavrei esta ata que vai assinada pelo Presidente e por mim, Manoel Pinto Ribeiro, Segundo Secretário.

 

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