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ATA DA SESSÃO CULTURAL DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA, COM PALESTRAS DOS ACADÊMICOS ANTÔNIO JOSÉ CHEDIAK E DOMÍCIO PROENÇA FILHO, EM 04 DE DEZEMBRO DE 1999

 

Em quatro de dezembro de mil novecentos e noventa e nove, às 15h30min, no RAV 112, na UERJ, no 11º. andar, na Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, foi realizada sessão cultural com palestras dos acadêmicos Antônio José Chediak e Domício Proença Filho. Aberta a sessão pelo Presidente, Prof. Leodegário A. de Azevedo Filho, foram aprovadas as atas das sessões de 18.9.1999 e de 01 e 06.10.1999. A seguir, foi dada a palavra ao Prof. Chediak, que, exibindo diversos documentos históricos, propiciou aos presentes o conhecimento de fatos que mostram a importância de nossa Academia. O primeiro foi o Anteprojeto de revisão do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1944, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro-Brasil), enviado, em 17.12.1958, pelo Prof. Chediak ao então Presidente da Academia Brasileira de Filologia, Prof. Cândido Jucá Filho. Em outro documento, um ofício, de 11 de dezembro de 1942, da Academia Brasileira de Letras, cujo Presidente era José Carlos de Macedo Soares, o Prof. Chediak recebia as primeiras provas tipográficas do Vocabulário Ortográfico da Língua Nacional, e no qual se solicitava que ele acrescentasse as emendas necessárias, principalmente uma relação de brasileirismos correntes na linguagem literária e dos que, ainda não dicionarizados, deveriam ser pela sua expressividade e boa formação. Em 23 de janeiro de 1943, recebia o Prof. Chediak um ofício de agradecimento da Academia Brasileira de Letras , pelas observações feitas às primeiras provas do Vocabulário Ortográfico da Língua Nacional. Em 27.12.1943, recebia o nosso acadêmico um exemplar do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Num suplemento literário de “A MANHÔ, de 1.1.1944, é transcrito o discurso de despedida de José Carlos de Macedo Soares da Presidência da Academia Brasileira de Letras. Também foi exibido o livro de atas da Academia Brasileira de Filologia, de 19 de dezembro de 1971 a 21 de dezembro de 1975. Outro documento importante, sem data, tem o título de “O QUE É, E O QUE TEM FEITO A ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA”. Em 03 de maio de 1973, pela Portaria “E” n.º 27, o Prof. Antônio José Chediak, Secretário de Estado da Administração, usando das atribuições que lhe conferia o Decreto n.º 403, de 30 de março de 1961, e tendo em vista o disposto no artigo 2.º do Decreto n.º 2837, de 6 de setembro de 1923, RESOLVEU, na conformidade da Lei nº. 2172, de 16 de abril de 1973, declarar de utilidade pública a “ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA”, expediu uma Portaria. ( publicada no Diário Oficial n.º 82, de 2.5.1973). Ainda o Prof. Chediak entregou à Academia Brasileira de Filologia um livro com recortes diversos com o título “Filologia – originais – inéditos – autores vários”, um livro de atas da Academia, de 19 de dezembro de 1971 a 21 de dezembro de 1975, e uma síntese histórica de nossa entidade, de 1944 a 1949, primeira parte. editada por ele em 20 de outubro de 1999. Também fez a doação de uma tese em Latim de Bélchior Cornelio da Silva, defendida em 7.11.1980, denominada de LII Carmina Drummondiana Latine Reddita, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Sala Guimarães Rosa, cuja banca foi constituída dos professores Olmar Guterres da Silveira, Estevão Tavares Bethencourt, Evanildo Bechara, Ruth Faria e Antônio José Chediak. Após sua exposição, o Prof. Chediak, que sempre marcou sua atuação na Academia por uma preocupação em preservar os fatos históricos de nossa entidade, fez entrega ao Prof. Leodegário, a fim de que fossem arquivados na Secretaria, todos os documentos que mencionou na palestra. O Presidente agradeceu, sensibilizado, a participação do notável acadêmico, a quem denomina de “memória viva da Academia”. A seguir, a palavra passou para o acadêmico Domício Proença Filho, encarregado da parte cultural da sessão, com a palestra “O ENIGMA BENTINHO E O DIÁLOGO INTERTEXTUAL: LIMITES”, que é transcrita ipsis litteris: “A natureza do tema e as circunstâncias da fala levam-me a assumir, necessariamente, uma dupla condição: a de escritor e a de estudioso de literatura, fato aliás bastante comum no final deste atribulado século XX. Trata-se, a propósito, de um tempo, em que também é cada vez mais acentuada a complexidade da arte literária, situada na fronteira dos limites. E em que, no âmbito da crítica literária, convivem e por vezes se digladiam as mais variadas tendências. É ponto pacífico, entretanto, que, entre múltiplas configurações outras, a palavra, no discurso literário abrange um diálogo de vários textos, ou como, desde os anos 60, esclarece Julia Kristeva, a partir das teorias de Mikhaïl Bakhtin, “um cruzamento de superfícies textuais”, um diálogo de várias escritas: a de quem escreve , a do destinatário (ou da personagem), a do contexto cultural atual ou anterior. Converte-se, portanto, num mosaico de citações, envolve “a absorção e a transformação” de outros textos, consciente ou inconscientemente aproveitados pelo escritor. “A palavra no texto pertence, em termos de horizontalidade, simultaneamente ao sujeito da escrita e ao destinatário”, verticalmente, é “orientada na direção do corpus literário anterior ou ao sincrônico”. Trata-se dos conceitos bakhtinianos / diálogo e ambivalência, que, a partir da proposta de Kristeva, passaram a integrar a chamada intertextualidade. Intertexto, como polifonia e deslocamento são, vale dizer, práticas seculares da literatura ocidental; a novidade é que passam, na contemporaneidade, a ser técnicas assumidas intensa e deliberadamente pelos escritores. Estimulado pelo texto machadiano e pelo fascínio da moça dos olhos de água e à luz desses princípios, é que, também sob o signo do duplo, me permiti a escrita do romance Capitu: memórias póstumas. A literatura, como se percebe, não se afasta muito da fragmentação esquizofrênica. O texto dialoga conscientemente, portanto, com Dom Casmurro de Machado de Assis. E está longe de ser mera transposição, paráfrase, ou estilização. Muito ao contrário: reveste-se, pós-modernamente, de dimensão desconstrutora e crítica. Associa o sensível ao inteligível, intuição e razão. Ilumina este processo muito da vasta fortuna crítica machadiana. O romance se faz assim um exemplo de crítica-ficção ou ficção crítica. No perigo do limite, uma vez que era fundamental não mostrar os andaimes do edifício. Se isso ocorreu, o leitor, para meu desencanto, logo perceberá. O que, de certa forma me tranqüiliza, mesmo nestes tempos de questionamentos radicais, é a constatação de que o texto literário realmente representativo ultrapassa os limites do codificador para nos atingir, enquanto receptores, com mensagens capazes de revelar fundamente muito da condição humana. Seja na direção do ser individual ou do ser social. Literatura é conhecimento, desde Aristóteles. Dom Casmurro é, nessas direções, obra das mais significativas e permanentes. Por força do que nela se revela e do modo de realização que a configura, reveste-se de atualidade e abre-se, na sua polissemia, a inúmeras e variadas leituras. Que nos possibilitam depreender, entre outros, aspectos individuais e metonimizados nos personagens, multiplicidade de temas, projeções do social, visões de mundo, visão do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, articulações de linguagem e, sobretudo, configurações da complexidade da vida humana. Trata-se de uma narrativa que não se centraliza na ação. Nela importam sobretudo as situações ficcionais que a concretizam. O romance privilegia a matéria pensada, os comentários, as digressões do narrador em torno dos fatos. O texto se faz de sua visão unilateral e distanciada, sobre ser confessadamente suspeita: ela mesma declara, no capítulo LIX, que “sua memória não é boa” e exclamativamente, que “inveja os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram”, além de, em várias passagens, demonstrar suas dúvidas sobre o que narra. Trata-se de uma confissão que, praticamente, relativiza toda a história por ele contada e coloca sob suspeição. A posição do escritor, nessas circunstâncias, não aparece explícita. Machado fala muito mais através do silêncio do discurso. E nisso, é ainda uma vez pioneiro: se, como assinala uma das tendências da crítica contemporânea, cabe ao leitor a concretização do significado do texto literário, o romance machadiano abre plenamente o traçado de sua escritura a essa dimensão. Dialogar com tal texto era empresa especialmente arriscada: A dona dos olhos de ressaca é, afinal, um ícone da literatura brasileira. Machado é Machado, um dos maiores escritores da língua portuguesa. Capitu incorporou-se à realidade cultural brasileira como uma forma mentis, para usar a feliz expressão de marco Lucchesi. Relutei, confesso, nos primeiros momentos. Depois pensei: escrever é sempre um risco. O oxigênio da arte é a liberdade. Arrisquei-me. Com uma estratégia primeira: rastrear, nos interstícios da fala do narrador-casmurro não os aspectos que o concretizam e que a história se depreendem a partir do centramento em sua figura, mas buscar neles a “verdade” de Capitu. Afinal, ela era acusada, condenada execrada, sem nenhuma oportunidade de defesa. Não lhe fora concedido sequer o direito ao discurso. Ela nos chega através da palavra autoritária do Dr. Bento Santiago. É uma referência. Vários caminhos ficcionais se me ofereciam. Optei por conceder, cem anos depois, a palavra à antiga jovem de Matacavalos. E foi o Bruxo do Cosme Velho ele mesmo que me forneceu a chave do empreendimento: Se Brás Cubas escreveu de além-túmulo, por que Capitu não poderia ter aprendido com ele as artimanhas de tal escrita? E foi também ele quem, direta e indiretamente, me autorizou a valer-me do seu texto. No primeiro caso, com a manifestação expressa de sua palavra, no mesmo capítulo LIX do Dom Casmurro: Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu quando leio algum desta ou de outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! (...) Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. De maneira indireta, com seu exemplo, na feitura do seu próprio romance: um diálogo intertextual assumido entre outros e maior escala, com o Otelo, de Shakespeare, e apontou Eugênio Gomes, um possível aproveitamento do romance Madeleine Férat, de Emile Zola, autor que Machado confessadamente admirava. No primeiro caso, o capítulo LXXII é revelador. O Dr. Bento Santiago propõe que as peças começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à ação lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as cenas iniciais da ameaça dos turcos, as explicações de Otelo e Desdêmona, e o bom conselho do fino lago: “Mete dinheiro na bolsa”. De certa forma, parte dessa reforma acontece na elaboração do Dom Casmurro, onde seda a fratura do resgate e a tragédia não se consuma. O Dr. Bento não mata Capitu e, se não põe o dinheiro na bolsa, pelo menos faz sua catarse através do resgate na memória. Explicações. A presença sub-reptícia do texto de Zola se evidencia em algumas coincidências, ainda que, sob inúmeros aspectos relevantes, os textos se distanciem. O romance francês também envolve um triângulo amoroso. A jovem Madeleine, órfã de pai, ameaçada pelo assédio sexual do tutor, foge para Paris. Ali conhece Jacques, de quem se torna amante. Este viaja para o Oriente e dele não se tem mais notícia. Sabe-se que o navio em que viajava naufragara. Madeleine se liga então a Guilherme. Vai morar com ele. E encontra, na nova casa, um retrato de Jacques, com uma afetuosa dedicatória ao amigo. Guilherme quer muito ser pai. A jovem atende ao seu desejo: tem uma filha com ele, Lúcia. Três anos depois, carta de Jacques: está vivo, vem para Paris. Na sua primeira visita, Guilherme insiste para que more em sua casa. Os antigos amantes lhe revelam então o segredo de seu passado. Leal e francamente. A suspeita e o ciúme tomam conta de Guilherme. A menina, por sua vez, tem a mania de imitar pessoas. Inclusive Jacques. Guilherme, em pranto convulsivo, confessa à mulher que encontra semelhanças entre o amigo e a menina. De repente um olhar profundo de Madeleine lhe traz a revelação: ele estava certo. A semelhança era flagrante, sobretudo no jeito de enrugar os lábios e a testa. Guilherme desespera de ciúme. Nem falta o sonho de um naufrágio, em que um amigo emerge para arrebatar-lhe a mulher. Certas falas de Madeleine são significativas: “o passado era esse homem que o mar tragara”. Há uma criada, Genoveva, que por sua vez hostiliza a sofrida jovem senhora, e que vive a citar o Velho Testamento. Acrescentam-se outros fatos, como a repulsa gradativa de Guilherme pela criança, a ameaça de agressão, a navegação, a divisão, a sua decisão de suicidar-se, logo afastada, a sua proposta de viajarem para longe, o sue desespero cada vez maior e a conclusão, significativa: “Amei dois seres: Jacques e Madeleine, e esses dois seres ultrajaram-me desse modo”. Só faltava ter escrito “que a terra lhes seja leve”. E ainda a morte da menina, com o segundo amante a descobrir-lhe nos lábios a mesma gravidade da boca do amigo. Madeleine culmina a libertar-se pelo suicídio. Mais coincidências, é claro do que o diálogo assumido, uma vez que o texto machadiano reveste-se de maior complexidade. Poder-se-ia também pensar na hipótese de o aproveitamento de uma história que lhe foi contada por Graça Aranha, centrada em certa personagem grega, de quem tivera notícia, num hotel suíço, através de um polaco extravagante, uma jovem que "tinha uns olhos singulares e raros, exprimiam a um tempo um quê de perturbador, de tempestuoso, de voraz; e a um tempo eram mansos, cheios de volúpia terna, moribundos. Para defini-los pelos olhos alguém me disse: oblíqua e dissimulada. Creio porém que seria melhor dizer olhos de ondas, das pérfidas ondas, em uma palavra olhos de ressaca". E diz mais, na missiva, o autor de Canaã que era casada, tinha um amante, o melhor amigo do marido, que tivera um filho do amante. A suspeita do marido se se evidencia quando o menino começa a imitar os sestros do pai. Que morre afogado no mar do Pireu. A crise de ciúme chega ao ápice, na hora do enterro. Graça Aranha reproduz o que teria sido as palavras do narrador polaco "Momento houve em que os olhos da grega fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem a palavra destas mas grandes e abertos como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o narrador da manhã". É muita coincidência. A carta de Graça Aranha data de 30 de outubro de 1889. A primeira edição do romance machadiano data do mesmo mês, do mesmo ano. Rubens Alves Correia, em comunicação feita no VII Congresso da ASSEI-Rio, intitulada "Dom Casmurro pré e pós: dois quase casos de polícia e políticas" levanta a hipótese de uma brincadeira do autor de Canaã. A suposição certamente corresponde à verdade: segundo o machadianissimo Josué Montello, Graça Aranha estivera, com Joaquim Nabuco, em Paris, onde visitara a Editora Garnier e teria lido os originais machadianos. A história da jovem grega teria emergido da sua condição de amigo íntimo do criador da moça dos olhos de ressaca. Já Capitu: Memória Póstumas insere-se, deliberadamente, no intervalo do discurso de Machado-autor e de Bento Santiago-autor. É nesse lugar, confluência integradora de um e de outro, que se situa a aguda dimensão crítica com que o Bruxo vergasta a hipocrisia social, o conflito de classe, o jogo de interesses, a ditadura da aparência. No fundo, as memórias de Capitu foram pensadas como uma tentativa de decifrar o enigma Bentinho. Através do discurso da jovem de olhar de cigana. E sem desfigurar-lhe a personalidade e mistério que a cerca. E ela prova que o fruto que estava dentro da casca era ele. Desvenda-lhe a personalidade doentia. Põe a nu as mazelas do ciúme. Denuncia o preconceito social. Assume-se como mulher e retoma a trama-de-origem para desconstruí-la e analisá-la. E não teme valer-se de algumas transcrições, com as ações e os comportamentos submetidos à sua visão crítica. E mais: essa Capitu não é Bento Santiago. Fala uma língua própria. E marcada de simplicidade. E não se vale do capote axiomático tão do gosto do ex-marido. Não nos esqueça de que sua formação não passa da escola secundária. Como acontecia com algumas jovens privilegiadas do Rio do século passado. E, por outro lado, prescinde do recurso: não precisa do aval alheio para justificar seus atos e julgamentos. E ela, como Sancha, sua amiga de fé, é uma adolescente do século XIX, com a ingenuidade e a malícia que marca as jovens desse tempo, quer não cuidam de outra coisa que não seja o seu casamento> Essa a aspiração feminina por excelência, sobre ser aval de aceitação pela sociedade. A tal ponto que a idade casadoira ideal situava-se entre os 13 e 14. Chegar aos 20 sem casar era ser pejorativamente solteirona. As meninas eram educadas para ser esposas e mães. Para assegurar herdeiros, administrar o lar, cuidar das escravas, organizar festas, garantir a permanência e a continuidade dos valores da moral e dos bons costumes. Namoro? Platônico. A exigir sempre a presença de uma terceira pessoa junto. Comunicação de namorados? Por carta, bilhetes, flores, movimentos de leque. sexo, é obvio, só na condição de casadas e exclusivamente com o marido. E não era sem razão que o currículo escolar masculino destinguia-se do feminino: os alunos deveriam aprender a ler, a escrever, a contar, e os mais adiantados, aritmética, geografia, línguas. O aprendizado das alunas limitava-se às primeiras letras, à gramática portuguesa e francesa, à costura, à música, ao canto e à dança. De matemática, desde a lei de 1827, apenas as quatro operações. Já se percebe, diante desse quadro, caracterizado a partir de pesquisa de Ingrid Stein, a singularidade de Capitu. Os textos: semelhanças e dessemelhanças. Uma narrativa de ficção envolve tradicionalmente personagens em ação, integrada a uma narração, a partir de determinado enfoque, em torno de tema ou de temas, desenvolvidos a partir de um enredo ou trama, tudo isso criado num estilo peculiar. No caso, os dois textos têm em comum o enredo ou trama: não podia ser de outra maneira, diante da proposta; a ação é apresentada de modo similar: a seqüência de fatos que fazem o texto-origem, nuclearizada na deterioração de uma relação amorosa, destacado o duvidoso adultério, deflagrador do desequilíbrio da família. Só que Capitu destrói os argumentos de acusação apresentados pelo ex-marido. Que, a rigor, se reduzem a apenas quatro indícios circunstanciais de culpa: o encontro de Bentinho com Escobar no corredor de sua casa, quando o marido de Capitu voltava do teatro; a meia suspeita da sogra; a semelhança crescente de Ezequiel e Escobar, notadamente a partir do vezo de imitar assumida pelo menino; o olhar lançado ao cadáver do marido de Sancha, no momento do velório. O que o Dr. Bento objetiva, na verdade, mais do que caracterizar o adultério, é demonstrar, ao longo de sua exposição, que Capitu era mau-caráter desde criancinha, a Capitu menina já estava dentro da adulta, “como a fruta dentro da casca”. Era, portanto, visceralmente desonesta. É uma convicção que o narrador já traz pronta desde que decidiu contar sua história. As Memórias demonstram justamente o contrário: o fruto dentro da casca era ele, uma vítima doentia do ciúme, incapaz de assumir a conversa de risco. E isso só se torna possível por força da arte maior de Machado: da mesma forma em que o narrador de Dom Casmurro busca demonstrar que a “verdadeira” Capitu já estava dentro da casca desde sempre e remete o leitor a uma série de indícios, sub-reptícia e maliciosamente distribuídos ao longo do seu texto, a narrativa, em sua ambigüidade, deixa também perceber inúmeros elementos comprobatórios de que o ex-marido também já estava dentro de Bentinho, carregado de insegurança e de ciúmes. O romance machadiano possibilita, a propósito, como sua ampla fortuna crítica tem demonstrado, a depreensão não de um, mas de uma multiplicidade de temas: ao lado do ciúme e do adultério, encontram-se o ressentimento, a dúvida, a fratura do resgate, a fatalidade da infelicidade do ser humano, a ambigüidade e o fazer do romance, a dissimulação do erotismo feminino, a crítica ao comportamento religioso, a denúncia da ditadura da aparência, o desvendamento da prática jurídica, a relatividade do comportamento humano. E tais dimensões permanecem, a luz de outro enfoque, na falta de Capitu, em suas memórias póstumas. E a ela se acrescenta a crítica à visão machista e patriarcalista da sociedade ao tempo da ação narrada e retomada. E o acentuar da denúncia do conservadorismo. A fala de Capitu em seu relato acentua a denúncia desses aspectos, antes valorizados no âmbito da trama, ao se concentrar na figura feminina. Há que observar que a prática adulterina era vista, em relação ao homem, com condescendência as Memórias Póstumas de Brás Cubas o evidenciam à larga. A narração é diferente: em Dom Casmurro ela é conduzida por Bento Santiago, uma voz masculina, em Capitu, por ela, uma voz feminina, isenta da visão do narrador-casmurro, a tal ponto comprometidamente machista, que chega a considerar “atrevidas” as idéias da mulher, porque questionadoras. As idéias e certas atitudes que ele considera, como assinala Roberto Schwarz, “falta de caráter, elemento de interesse erótico ou característica geral e desabonadora da psicologia feminina”. Presença forte nos seus romances, a figura feminina é, entretanto, impiedosamente retratada, com algumas exceções. Embora as privilegie, com destaque no jogo das ações que faz a narrativa, em geral sua pena acentua traços de mau-caráter, de falta de firmeza, de dubiedade, frivolidade, interesse. Capitu é uma das exceções, mas, se lida na palavra do narrador-personagem, não escapa: no fundo, no fundo, a crer nas palavras do ex-marido, é uma jovem tão casadoura, interesseira e volúvel como Virgília, de Memórias póstumas de Brás Cubas e Sofia, de Quincas Borba. E, quando casada, perde a sobranceria, diante dele. Lida sob outro ângulo, também possibilitado pelo alto índice de ambigüidade do texto, a moça dos olhos oblíquos representa a insubordinação ao domínio machista cultivado pela rígida sociedade do tempo. Seu posicionamento revela a ruptura com os valores internalizados nas mulheres suas contemporâneas e que só mais tarde começarão a ser substituídos. Sua estratégia: a dissimulação. A mesma arma que Sofia e Virgília usam como instrumento de ascensão social. Só que, em ambas, a infidelidade se explicita e, no caso de Capitu, permanece sob a sombra da dúvida. E, afinal, seu casamento deu no que deu. As mulheres machadianas, acrescente-se, ainda que inteligentes e cultas, raramente se transformam, em termos de condição social. Ressalte-se a valorização e a identificação com o lar, com a ordem, com a família, a maternidade, como é o caso de D. Glória, embora, na dubiedade com marca seus personagens, associadas à ditadura da aparência, quando não, ao autoritarismo de classe. Nem Capitu escapa dessa última configuração, ainda que, estruturalmente, represente um contraponto em relação à mãe de Bentinho. Repare-se que tudo, na primeira parte de Dom Casmurro, converge para a união dos dois jovens enamorados, para a realização dos seu projeto amoroso. E, depois de casados, o filho torna-se obsessão. Paralelamente, acentua-se a noção de que o casamento restringe o amor. A valorização deste último ocorre na imaginação ou na relação interdita da condição de amante. Virgília, por exemplo, casada com Lobo Neves e amante de Brás Cubas, cresce, na medida em que vive o permanente sobressalto do adultério, até porque, nessa direção, caracteriza-se uma afirmação de liberdade de ser, de assumir-se. Por outro lado, enquanto heroína, a figura da mulher surge sempre como perturbadora e inesperada, dotada de estranho fascínio e associada à tragicidade da existência. Traz a marca da fatalidade. Sobre ser configurada à luz de elementos que a fazem enigmática. Capitu se insere plena nesta última dimensão. Perturba, surpreende, fascina, intriga. Fataliza-se. É, seguramente, a mais densa personagem criada por Machado. Repare-se que tais verbos, à exceção do último, incidem sobre a sensação do outro. O talento do escritor a esboçou em breves traços físicos, e, basicamente, em duas imagens fortes, definidoras e funcionais, na medida em que importam para o desenrolar da trama e o traçado da narrativa. E, ao longo do discurso do narrador, ganha seus plenos contornos. De um lado, através de sua ação e de sua reflexão, de sua condição de mulher-cabeça, de marcada independência intelectual, com os pés no chão da objetividade, e através do jogo de relações com os demais personagens, em especial Bentinho. De outro lado, através da sua configuração psicológica, enquanto personalidade forte e da sua dimensão social, enquanto representativa de classe ascendente. A denúncia que Machado de Assis faz não a deixa romper a couraça do Aldo forte do sistema, mas a pena do escritor caracteriza a significação da tentativa de ruptura. Compare-se com Sancha, burguesmente a mulher de Escobar. Situada no espaço da ordem e do comportamento esperado. A tal ponto, que serve de mobilização para o desejo de Bentinho. E acaba por contribuir para realçar, por contraste, a figura da amiga. Capitu é na linguagem. E é na linguagem que ela retoma nas suas memórias. A questão do ponto de vista é mais complexa: no primeiro texto, Bento tem por trás Machado de Assis, no segundo, o autor está por trás da personagem –narradora por sua vez intermediada pelo narrador-persogem Bento, por seu turno criado e conduzido por Machado ... linguagem e metalinguagem também se interpenetram e se intercruzam no discurso da ex-mulher do Dr. Bento. Seu discurso, de certa forma, é influenciado pelo do ex-marido. Por motivos óbvios. Tempo e espaço também são distintos: o casmurro associa tempo cronológico e tempo psicológico; Capitu escreve, com Brás Cubas, de um tempo atemporal, posto que de além-túmulo; acrescenta esse aspecto ao texto. E se Dom casmurro se faz de viagem na memória, as memórias se fazem de viagem no discurso. Sua narrativa, por outro lado, mantém-se fiel à integração dos três espaços que fazem o romance-origem: o mundo interior, o ambiente familiar, a cidade do Rio de Janeiro. Mantém o privilégio concedido ao primeiro, agora deslocado para sua própria imaginação, depreendida da narrativa primeira; agora é o seu universo psicológico, é o seu código de valores que se instaura. O espaço familiar ganha também novo enfoque, mas continua sendo uma microssíntese da sociedade brasileira dos tempos do Império, o Segundo Reinado. E quanto à realidade urbana, a narradora se permite, com um olhar mais rigoroso do que o de Bento Santiago, situar a realidade do Rio de Janeiro à época, como quando comenta as visita do Santíssimo aos enfermos: É importante que se diga que essas visitas do Santíssimo eram bastante freqüentes. A tuberculose, que levara tanto sofrimento àquela família, era uma ameaça constante. A cidade, em que pese a beleza da paisagem, não desfrutava de condições de higiene; a atmosfera, em vários sítios, era dominada pelo cheiro fétido, oriundo das águas estagnadas e dos dejetos, jogados diariamente na praia pelos escravos. Sarampo, varíola, peste bubônica, vez por outra assustavam e dizimavam. Por isso, qualquer febre mais alta era um susto para familiares e amigos. Mesmo porque a média de vida era muito baixa e muita criança morria logo nos primeiros anos. Na maioria dos casos, apesar dos esforços dos médicos abnegados, a solução era, literalmente, buscar em Deus o caminho da salvação. Papai tinha orgulho de participar dessa cerimônia solidária. Imagine-se o que sentiu naquele dia. Os personagens centrais são apenas similares: a Capitu recriada é quase indissimulada, quase transparente, profunda, está longe de ser a mera referência do discurso do ex-marido, ainda que sem perder a sua condição de enigma, na medida em que o núcleo deflagrador do conflito básico da trama permanece na zona de sombra; o bentinho do segundo romance é distinto do Bentinho do primeiro, no desmascaramento levado a termo por Capitu. Os demais participantes mantém-se fiéis ao texto machadiano, mas a óptica da narradora é obviamente diferente. É ver, por exemplo, o início do capítulo VII: “Bentinho vivia repetindo que sua mãe era boa criatura. Não era bem assim. D. Glória, apesar da aparente mansidão e da emotividade, era uma matriarca autoritária e dominadora”. Obviamente, o estilo de Capitu é totalmente distinto do estilo do Dr. Bento. Embora assuma alguns procedimentos, como o da técnica da insinuação insidiosa, seu discurso é assumidamente mais despojado. Usa com mais parcimônia os recursos da ironia e do humor, o apelo à participação e à cumplicidade do leitor, marcas fortes do texto machadiano. A retomada de certas falas, sob a forma de transcrição ou de paráfrase se fez necessária, como forma de garantir fidelidade ao texto-origem; o emprego de outra solução ampliaria o risco de desfigura-lo, e poderia marcar um conflito com o estilo inimitável do mestre. Ressalte-se que todas as transcrições são objeto de comentário da narradora; por trás deles, evidentemente está a perspectiva crítica do autor do novo romance. Exercita a metalinguagem, para assinalar ainda mais o distanciamento, uma vez que sua narrativa parte de outro texto, com o qual dialoga. Abriga-se nele, sub-reptício, o muito da visão crítica do autor, acentuada a insegurança da personagem garantidora da necessária ambigüidade. Vale-se, como o seu ex-marido, da linguagem coloquial, e, com menos freqüência, da linguagem figurada. Afinal, mesmo com as leituras que marcaram o seu percurso existencial, ela não tem curso superior. Vale-se do uso culto do idioma, mas com concessões a palavras e expressões do uso cotidiano descontraído, próprias do coloquialismo da linguagem familiar. E nisso segue na esteira do narrador primeiro. Quase nunca hiperboliza. E não usa, declaradamente, o apoio no capote axiomático ou na citação abonadora. Nem provérbios populares. É claro que o seu texto acaba, como o do ex-marido, convertendo-se, ainda que em menor escala, numa figuração alegórica múltipla que abarca, entre outros aspectos, a alegoria do vazio da existência, a alegoria da derrota existencial do ser humano, a alegoria das relações de classe no Brasil do Segundo Reinado. Em síntese, tudo o que é assumido por Capitu está no romance machadiano, no silêncio do texto do romance. Minha função foi apenas iluminar esses espaços. E sob esta luz, Capitu, sendo a mesma, é outra. O seu discurso é como a casa do Engenho Novo, em relação a de Matacavalos: se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. E o meu texto só pode ser escrito por força da universidade e da multissignificação que marcam a ficção do gênio que foi Machado de Assis. Quanto ao resto... o resto é literatura.” Após a palestra, o Presidente fez algumas referências sobre a obra de Machado de Assis, tendo agradecido a participação brilhante do Prof. Domício. Como não houvesse mais nada a tratar, o Prof. Leodegário deu por encerada a sessão. Para constar, lavrei a presentre ata que vai assinada pelo Presidente e por, Manoel Pinto Ribeiro, Segundo Secretário.


NOTAS DA EXPOSIÇÃO DO PROF. DOMÍCIO PROENÇA FILHO

[1] KRISTEVA, Julia. Le mot, lê dialogue et lê roman. In: Semeiotiké; recherches pour une sémanalyse. Paris, Seuil, 1969, p.144: “Lê” mot littéraire” n’est pas un point ( un sens fixe), mais un croisement de surfaces textuelles, un dialogue de plusieurs écritures: de l’écrivain, du destinataire (ou du personnage), du contexte actuel ou antérieur”. 

[1] KRISTEVA, Julia. Le mot dans l’espace de textes. In: op. Cit., p.145.

[1] Id. Ib.

[1] CI. KRISTEVA, Julia, op. Cit. P.149.

[1] MACHADO DE ASSIS. Dom Casmurro. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro. Comissão Machado de Assis, 1969. P.

[1] CI GOMES, Eugênio. O enigma de Capitu. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1967. P.166-67 

[1] Id. Ib. p. 

[1]GRAÇA ARANHA. Cartas de Graça Aranha a Machado de Assis. In: Revista Brasileira. Fasc VII, jul – ago – set de 1995. Ano I, n 4, Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras.

[1] Cf. PEREIRA, Rubens Alves. Dom Casmurro pré e pós. Dois quase casos de polícia e de políticas. In: Estudos da linguagem: Atualidade e paradoxos. Anais do VII Congresso da ASSEL-RIO. Rio: Associação de Estudos da Linguagem do Estado do Rio de Janeiro, 1997. p 532-539.

[1] Cf. MONTELLO, Josué. As liberdades de Graça Aranha. In: O presidente Machado de Assis. São Paulo, Martins, 1961, p. 290-314.

[1]Cf. STEIN, I. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

[1] SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo, Cia. Das Letras, 1997. p. 27.

 

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