Principal

Voltar

 

ATA DA REUNIÃO EXTRAORDINÁRIA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA DO DIA QUATORZE DE OUTUBRO DO ANO DOIS MIL.

 

Às quinze horas e quinze minutos do dia quatorze de outubro do ano de dois mil, no RAV 112 (ao lado da sala 11032-F) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, estando presentes os Acadêmicos Antônio José Chediak, Maximiano de Carvalho e Silva, Evanildo Cavalcante Bechara, Amós Coêlho da Silva, Rosalvo do Vale, José Pereira da Silva, Álvaro de Sá, além de diversos convidados, o Senhor Presidente, Leodegário A. de Azevedo Filho, iniciou a reunião extraordinária da Academia Brasileira de Filologia, destinada à discussão das NORMAS DE FUNCIONAMENTO DAS SESSÕES ORDINÁRIAS MENSAIS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA, propostas pelo Acadêmico Maximiano de Carvalho e Silva, e a HOMENAGEAR EÇA DE QUEIRÓS, na passagem do centenário de sua morte, por meio de uma conferência proferida pelo Acadêmico Leodegário A. de Azevedo Filho, convocando o Segundo Secretário, José Pereira da Silva, para fazer a leitura da ata da reunião anterior, que foi discutida e aprovada com as seguintes ressalvas: onde está escrito “Milton Vasco da Gama”, corrija-se para “Nilton Vasco da Gama”; onde está escrito Driter Wall Roth, corrija-se para “Dicter Woll , Wolfgang Roth”, acrescentando-se a informação, que escapou ao secretário, de que os seguintes acadêmicos receberam o título de Professor Honoris Causa pela Universidade Federal Fluminense: Sylvio Edmundo Elia (In Memoriam), Evanildo Cavalcante Bechara, Maximiano de Carvalho e Silva e Rosalvo do Vale.  Após a leitura e aprovação da ata da reunião anterior, o Senhor Presidente colocou em discussão a proposta apresentada pelo Acadêmico Maximiano de Carvalho e Silva, para se estabelecerem as NORMAS DE FUNCIONAMENTO DAS SESSÕES ORDINÁRIAS MENSAIS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA, cujo texto final vai transcrito EM ANEXO, depois das emendas e modificações sugeridas e aprovadas. Durante a discussão das normas acima transcritas, o Acadêmico Álvaro de Sá solicitou um relato mensal sobre o andamento dos trabalhos das comissões da Academia, ficando acertado que a Comissão da Reforma da Nomenclatura Gramatical Brasileira deve apresentar o anteprojeto até o final deste ano de dois mil.  A seguir, o Senhor Presidente passa a direção dos trabalhos ao Senhor Vice-Presidente, Acadêmico Evanildo Cavalcante Bechara, que apresenta o conferencista, Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, que falou sobre a “A Vida e a Obra de Eça de Queirós”, cujo texto vai transcrito em anexo.  O Acadêmico Antônio José Chediak comentou, ao final da exposição, que gostaria de que se tratasse do caso de A tragédia da Rua das Flores, ao que o conferencista retroucou, lembrando que o tempo destinado a  sua exposição era demasiado breve para que se pudesse  tratar de caso tão complexo, para o que seria necessário o tempo de uma conferência inteira, pelo menos.  O Acadêmico Rosalvo do Vale, apresentando diversas achegas para ilustrar o tema tratado, abriu um debate entrecortado de réplicas e tréplicas, conforme se poderá ler na transcrição da gravação em fita eletromagnética.  A Professor Eliana da Cunha Lopes elogiou o desempenho do conferencista, pedindo-lhe o texto, que foi prometido para o final das atividades da reunião em curso.  O Acadêmico Evanildo Bechara solicita um paralelo de Eça de Queirós com Machado de Assis, fazendo algumas considerações sobre algumas particularidades que colocam os dois grandes escritores em pólos distintos.  O Acadêmico Maximiano de Carvalho e Silva solicita a constituição de uma mesa-redonda para tratar das interferências de escritores famosos na política do idioma a partir do final do século passado, tendo-se acertado que o tema deverá ser tratado no ano que vem. Franqueando a palavra aos acadêmicos para o item “Assuntos gerais” e, não havendo nada mais a tratar, o Senhor Presidente, Leodegário A. de Azevedo Filho, às dezoito horas e dez minutos, deu por encerrada a sessão.  E eu, José Pereira da Silva, Segundo Secretário, lavrei a presente ata, que vai assinada por mim e pelo Senhor Presidente.


ANEXO 1: 

ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA

NORMAS DE FUNCIONAMENTO DAS SESSÕES ORDINÁRIAS MENSAIS

1. A Academia Brasileira de Filologia terá pelo menos uma reunião ordinária mensal (e sessões extraordinárias, a critério da diretoria), em sua sede, marcada, em princípio, para o último sábado de cada mês, das 15 às 18 horas.

2. Cada sessão se iniciará sob a direção do Presidente da Academia Brasileira de Filologia, ou, na sua ausência ocasional, do Vice-Presidente ou de um dos outros integrantes da Diretoria.

3. A ata de cada sessão será lavrada de modo resumido, dela constando obrigatoriamente: pauta da reunião; relação dos acadêmicos presentes; justificativa de ausência; assuntos gerais; temas em debate; deliberações. Os textos das comunicações acadêmicas poderão ser anexados às atas e, no caso de serem comunicações improvisadas, deverão ser redigidas ementas ou resumos para serem também anexados.

4. A sessão se dividirá em três partes: a) expediente; b) comunicações dos acadêmicos; c) exposição de um tema previamente indicado e debates.

5. Na parte do expediente, além de outros assuntos propostos pela Diretoria, serão distribuídas cópias da ata da sessão anterior, a qual poderá ser objeto de retificação escrita, encaminhada à mesa dos trabalhos.

6. Serão reservados 60 minutos para as comunicações dos acadêmicos, tendo cada um deles até 10 minutos para a sua intervenção.

7. A exposição referente ao tema em debate deverá ser feita por um acadêmico apenas, em no máximo 60 minutos, ou em mesa-redonda por três acadêmicos, cada um dos quais com o limite de 20 minutos para expor as suas idéias.

8. O restante da sessão será reservado ao debate sobre as questões levantadas pelos oradores.

9. A Diretoria da Academia Brasileira de Filologia, para a organização do plano anual de atividades, escolherá com plena liberdade os oradores de sessões especiais, e consultará por escrito todos os acadêmicos sobre o interesse de tratar em sessão ordinária de um tema de livre escolha dos mesmos.


ANEXO 2:

GUERRA DA CAL E A ESTILÍSTICA QUEIROSIANA

Leodegário A. de Azevedo Filho (ABF)

Na década de 50, os estudos de estilística queirosiana atingiram a sua plenitude, sobretudo com a publicação do livro Lengua y Estilo de Eça de Queiroz (Coimbra, 1954), com duas traduções para o português: a de Lisboa, pela Aster, sem data, – o que é um hábito péssimo – mas cremos que de 1960; e a do Rio de Janeiro, pela Editora Tempo Brasileiro, de 1969.  Pela data da editio princeps (1954), vê-se que o livro, realmente, apareceu no auge dos estudos estilísticos.[1]  Tanto assim que, de 1954 a 1960, mais de trinta resenhas, em onze nações, saudaram o aparecimento da obra, prova de que até faltava à bibliografia especializada uma investigação universitária tão completa quanto esta, levada a cabo pelo saudoso Mestre galego-português Ernesto Guerra da Cal.  Entre os numerosos nomes que então subscreveram críticas e recensões, mencionamos os de Ramón Otero Pedrayo, Gilberto Freyre, Luís da Câmara Reis, J. do Prado Coelho, Heinz Kröll, Giuseppe Carlo Rossi e Euryalo Cannabrava.  Este último, na “Apresentação” que redigiu para a edição brasileira da obra, com apreciável poder de síntese, acentuou:

A revolução de Eça, por isso mesmo, rompeu os padrões uniformes e homogêneos da estilística linear.  Abriu brecha funda nas convenções retóricas, tornando a língua portuguesa flexível e maleável como argila de vaso.  Cultivando a musicalidade do ritmo sentencial, Eça promoveu a sua distribuição em grupos poliários, alternativos, métricos e tônicos.  O seu instinto do ritmo binário, terciário e quaternário, através dos exemplos de Guerra da Cal, explicam a polifonia do contraponto queirosiana.  Este contraponto, na base da música verbal, retira das imagens sonoras e visuais aquele substrato de sensorialidade que dinamiza o curso da linguagem literária. Este fundo sinestésica, de base imagística e sensorial, galvaniza a prosa de Eça, imprimindo-lhe a naturalidade das coisas fruídas com voluptuosa lentidão.  Eis porque a sua obra, falando diretamente aos sentidos, apela à imaginativa, envia mensagem à inteligência e à sensibilidade do leitor.  (op. cit. p. 18).

Na verdade, estamos diante de um autor que, antes de ser um deformado pela influência estrangeira, como certa crítica de feição vesgamente purista pretendeu insinuar, soube introduzir na língua literária de Portugal, um conjunto de técnicas – exaustivamente analisadas por Ernesto Guerra da Cal em seus elementos básicos – que afinal lhe deram flexibilidade expressional.  Uma espécie de flexibilidade vibrante, assim como a do aço de um florete, como sugeriu Euryalo Cannabrava.

Por outro lado, a sua ironia, sempre cáustica e aguda, submeteu os hábitos e os costumes de uma estrutura social arcaica à gargalhada[2] ampla e sonora do mundo moderno.  Em verdade, o que ele buscou apreender, mas isso para ironizá-los em sua ficção, foram os aspectos negativos de uma sociedade em crise, a sociedade do velho mundo burguês, romântico e explorador, como ele costumava dizer.  Daí a crítica à educação apegada a valores institucionalizados e fossilizados, pois tais valores é que respondiam pela continuação do mundo decadente.  Não retrata, faz caricaturas.  E com as armas do ridículo e da ironia procurou destruir um mundo, para levantar outro mundo sobre as ruínas do primeiro, conforme a sua visão positivista e de acordo com o sentimento que tinha da realidade.  Para ele, já se disse que o mal estava no galho de árvore que apodreceu.  Bastava assim podar a árvore, cortando-lhe o galho doente, para que ela ressurgisse com esplendor.  Ao contrário dele, para o nosso Machado de Assis, que assumiu o pessimismo e o ceticismo de maneira integral, o mal não tinha remédio, pois vinha da raiz da própria árvore.

Como é evidente, um romancista assim interessante – e até certo ponto complexo para a época em que viveu – estava a exigir um analista capaz de submeter o seu processo de criação literária – ele fazia do romance uma espécie de instrumento de reforma social – a uma análise de profundidade, sobretudo de uma análise centrada na linguagem, a partir mesmo dos pressupostos teórico-estilísticos dominantes na primeira metade do nosso século.  Sem dúvida alguma, este analista minucioso e competente foi Ernesto Guerra da Cal, preliminarmente estudando a linguagem eciana em função de sua afetividade e de sua expressividade.  Para isso, naturalmente, recorreu aos dados fornecidos pela própria evolução da estilística.  Ou melhor, recorreu à Estilística que se voltou para o estudo do sistema expressivo de uma obra ou de um autor, entendendo-se por sistema expressivo não apenas a estrutura imanente da obra, mas também o poder sugestivo das palavras.  Assim, um texto só é criador, quando os seus significantes são capazes de instaurar novos significados, cabendo à crítica desvendar o sentido novo do próprio texto.  Tudo isso – e muito mais! – procurou fazer Ernesto Guerra da Cal, penetrando a fundo no coração da linguagem de Eça, para analisar exaustivamente a reforma estilística por ele implantada em nossa língua comum, uma reforma orientada no sentido da própria forma e sempre em busca da perfectibilidade ou da possível perfeição.  De início, o uso das palavras, as preferências idiomático-expressivas, o léxico em seu conjunto e a sintaxe em geral.  Em seguida, a atitude impressionista do escritor, representando não as coisas em si, mas as sensações que as coisas provocavam nele.  Por fim, o estudo estilístico da frase e a própria poetização da prosa literária.

No emprego expressivo das classes de palavras, a partir mesmo do substantivo, a utilização estilística do adjetivo ocupa importante espaço no livro, criando Eça o seu texto por meio de alianças desusadas, por hipálages ou não, na medida em que o poder expressivo se impunha ao poder verbal.  A sua adjetivação é impressionista e, não raro, o adjetivo assume um tríplice valor estilístico, como neste exemplo:  “Todos os dias de jejum come um peixe austero.” (CFM, 240).  Ora, o adjetivo austero, sintaticamente, modifica o objeto direto um peixe, mas se refere psicologicamente ao sujeito da oração (Padre Salgueiro) e tem valor de advérbio de modo: austeramente.  A exemplificação oferecida por Ernesto Guerra da Cal é muito rica, citando-se aqui apenas pouquíssimos exemplos:

“Em Oliveira tomo com ela um chá respeitoso.”  (CFM, 240)

“... uma cervejaria filosófica da Alemanha.” (CFM, 90)

“... as sedas impudicas de Sheba...”  (Rel., 215)

Ao tratar do adjetivo adverbial impressionista e de sua ubiqüidade funcional, exemplifica:

“Adélia... fumava um cigarro lânguido.”  (Rel., 22)

“... passando o braço concupiscente pela cinta de Adelaide.” (OPB, 532)

“... pôr mão libidinosa no seio respeitável de D. Josefa...”  (CA, 177)

A utilização estética do adjetivo é assim exemplificada:

“... avistei a ermidinha virginal dormindo castamente sob os plátanos.” (Rel., 80)

“... partimos para o devoto Jordão.” (Rel., 123)

“... a erudita nave da biblioteca.” (CS, 15)

O uso do adjetivo como imagem condensada, a materialização do abstrato e a idealização do concreto são processos estilísticos assim exemplificados:

“... a invasão surda e formigueira do trabalhador chinês...” (CFB, 64)

Entenda-se: invasão como a das formigas.

“Não há ação sobre a que não estejamos prontos a promulgar uma opinião bojuda.” (CFM, 245)

“... Silêncio enrugado...” (CS, 16)

A síntese das percepções mistas e as sensações contraditórias:

“... ela mostra seu lindo espanto.” (CS, 87)

“... Fatné esperava-os, majestosa e obesa,  envolta em véus brancos...” (Rel., 115)

“Só o poeta idealista permanecera impassível na sua majestade obesa.” (CS, 74)

O adjetivo como traço deformativo e caricatural:

“... com o odioso guarda-chuva entre os joelhos.”  (CPA, 482)

“A tarde descia pensativa e doce.” (CS, 128)

“Ao fim desse inverno escuro e pessimista...” (CS, 154)

Em suma, a exemplificação é riquíssima, estudando Ernesto Guerra da Cal o valor estilístico do adjetivo ainda em outras situações, tais como: as linhas imprecisas e as emoções inconcretas, a adjetivação binária, a função musical e rítmica do adjetivo na frase, etc.  E assim conclui:

“A adjetivação de Eça expõe com grande evidência, como pudemos observar, algumas das características básicas de sua maneira estética de ver e de conceber a realidade, assim como certos traços essenciais do seu temperamento.” (op. cit., 153)

Na mesma linha de análise estilística, Ernesto Guerra da Cal trata, em seguida, do uso do advérbio de modo (... velhos gordos, de casaco escarlate, pedalavam gordamente); do advérbio metafórico (... alçando catedraticamente o bico, recolheu um momento aos depósitos do seu saber); do advérbio emocional, como veículo de comicidade (Tu já estiveste em Jerusalém, Alpendrinha? – perguntei enfiando desconsoladamente as ceroulas); do advérbio animista, subjetivo e caricatural (A sineta tilintou, languidamente); da aliança advérbio-adjetivo (... dolorosamente queixoso, delicadamente lânguido...); do advérbio como elemento antitético do verbo (O grande Dornan mamava majestosamente um imenso charuto); e do advérbio como elemento musical da frase (O magistrado pagou o chá, nobremente).

No que se refere à utilização expressiva do verbo, aprecia: a permutação dos verbos comuns (A massa bojuda do Pimenta rebolou para mim com amizade); o emprego estilístico dos tempos; e o estilo indireto livre, além de várias outras dissonâncias verbais expressivas.

Penetrando no mundo estilístico da frase, Ernesto Guerra da Cal – sempre com mão de mestre – analisa a frase curta e a guerra contra as partículas de conexão lógica, até chegar aos novos padrões melódicos, à ordem das palavras, à pontuação, às grandes estruturas rítmicas, ao ritmo binário, à antítese, ao paralelismo, à simetria, aos ritmos ternário, quaternário e múltiplo, à estrutura enumerativa, à ampliação, aos sistemas de plurimembração paralelística e às combinações e aos cruzamentos rítmicos.  Por fim, Ernesto Guerra da Cal trata da poetização da prosa (harmonia imitativa, aliteração,); da repetição como agente lírico; e da similicadência.

Diante do que acima se viu, ainda que numa apreciação extremamente resumida, se me pedissem uma obra representativa do período mais festejado da análise estilística nos domínios da língua portuguesa, sem desconhecer outras contribuições importantes, como a de M. Rodrigues Lapa, eu não teria nenhuma dúvida em indicar o excelente livro desse extraordinário poeta e crítico, que tanto honrou a sua terra natal, a doce e triste Galiza, e que tantos amigos deixou em Portugal e no Brasil.  Há mesmo alguns autores que, embora escrevendo e publicando vários ensaios e livros, ficam com o nome preso a uma obra apenas, como foi o caso brasileiro de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala.  Pois bem, o conferencista, professor, poeta e crítico literário, aqui justamente homenageado, o meu saudoso Amigo Ernesto Guerra da Cal, embora com vários outros trabalhos impressos, até mesmo magníficas recensões, como a que ez do meu livrinho As Cantigas de Pero Meogo, terá sempre o seu nome ligado a Eça de Queiroz (ele gostava de grafar Queiroz com –z e não com –s), exatamente por ter escrito e publicado este delicioso livro sobre a língua e sobre o estilo do grande romancista português.  Na verdade, Eça merecia o estudo que lhe dedicou Ernesto Guerra da Cal, não apenas por ter consolidado a técnica do romance realista em seu tempo, mas também porque elevou a língua comum a padrões estilísticos até então nunca atingidos.  Em suas mãos, o glorioso idioma de Camões passou por uma revolução estilística total, na medida em que lhe foi cortando as amarras do purismo e da gramatiquice, que eram as cordas que o prendiam ao passado.  Acusaram-no, por isso mesmo, de cometer “pecados lingüísticos”, blasfêmia que ele ironizou com um sorriso nos lábios, como se pode ver no seguinte e engraçadíssimo trecho do livro Correspondência Inédita de Fradique Mendes:

... a face chupada pelas ansiedades da Prosódia, os óculos de aro de latão na ponta do nariz, bem bicudo para picar os galicismos, os braços atravancados de infólios clássicos e de dicionários... Folheia um grande e largo livro de História, ignorando mesmo se a História é de Portugal ou da China, põe o dedo ao fim de longa investigação sobre uma página e dá este resumo final numa voz cavernosa: massacre em vez de matança.  Livro funesto!

Pois bem, a revolução estilística introduzida por Eça na língua portuguesa, em seus elementos básicos, foi estudada a fundo no livro Lengua y Estilo de Eça de Queiroz, obra que se tornou clássica entre nós.

Finalmente, neste brevíssimo artigo, possa eu exprimir toda a minha imensa admiração pelas qualidades humanas do saudoso Amigo e sábio Mestre galego-português, que tanto ensinou os legítimos valores da nossa cultura, por onde andou.  E que via, em Portugal, “a sua Galiza independente”, como tantas vezes o ouvi dizer, no Solar de Estoril, onde vivia ao lado de sua querida Elsie, a companheira inseparável.



[1] O termo Estilística vem do século XIX, pois entrou em uso com o Romantismo.  Um dos primeiros a empregá-lo foi Novalis, na Alemanha, mas dentro ainda da tradição retórica: Stylistik oder Rhetorick.  Foi da França que a palavra se irradiou pelo resto do mundo, com sentido novo.  Entretanto, a noção de estilo é bem antiga, pois desde o século XVIII se fala em arte de escrever ou crítica do estilo, sempre com fundamento retórico, normativo ou didático, conforme a velha e bastante conhecida posição de Alballat.  Depois disso, a célebre fórmula de Buffon: “le style est l’homme même”, no sentido contextual de que o autor se exprime na obra, pois nela deixa particularidades específicas de sua individualidade ou personalidade.  Em suma, e isso é o que vai importar aqui, no início do nosso século, abriu-se espaço para a Estilística da langue (Bally) de um lado; e, de outro, para a estilística da parole ou discurso (Vossler).  Quanto à Estilística de Leo Spitzer, a despeito de suas aproximações com a de Vossler, na verdade buscou ela outros caminhos, mas também em oposição a métodos positivistas.  Aproxima-se de Vossler por considerar o estilo individual como objeto de estudo da Estilística, nisso opondo-se à concepção lingüística de Bally.  Mas distancia-se de Vossler na medida em que se inclina para a Psicologia, enquanto aquele autor não procurou sair dos domínios da Estética, por influência de Croce.  Em síntese, para Spitzer, pelo menos em seus estudos iniciais, o estilo é a expressão de uma personalidade em termos lingüísticos.  Em seguida, já assumindo uma posição pré-estruturalista (talvez fosse melhor dizer funcionalista), Leo Spitzer afinal encarou a obra de arte literária como um todo ou como uma estrutura, em função da qual os seus elementos integrantes adquiriam sentido.  Em seus últimos trabalhos, com efeito, chegou a abandonar o método psicológico por uma análise de pura base funcional, interpretando a obra de arte literária sem deliberado recurso à Psicologia, pois apenas em função de sua organização interna.  Entra aqui a famosa Escola Estilística Espanhola, conhecidíssima por Ernesto Guerra da Cal, a partir de Dámaso Alonso, desenvolvendo as idéias gerais de Vossler e de Spitzer.  Além disso, buscando a integração de contrários, Amado Alonso entendeu ser a Estilística da Língua (Bally) uma espécie de fase preparatória para a Estilística do Discurso (Vossler).  Com efeito, Amado Alonso via, no signo lingüístico, significação e expressão, vinculando o conceito de significação à função referencial da linguagem e o conceito de expressão à sua função afetiva.  Assim, caberia à Estilística do Discurso, segundo a posição de Amado Alonso, estudar “o lado afetivo, ativo, imaginativo e valorativo das formas de falar fixadas no idioma.  A primeira coisa que se requer, portanto, é uma competência técnica na análise afetiva, ativa, imaginativa e valorativa da linguagem”, – como escreveu em Matéria y Forma en Poesía (Madrid, Gredos, 1955).  Está ainda em Amado Alonso, via Dámaso Alonso, a idéia de que o significante instaura novos significados no texto literário, através das interrelações existentes entre um e outro.  Daí por diante, multiplicaram-se os estudos estilísticos, não apenas os que se consagraram à obra de um autor, mas também os que se relacionavam com a noção de estilo de época, ou mesmo os que se voltavam para a análise de determinados elementos de ordem lingüística ou não, tais como a expressividade no uso das palavras (substantivo, adjetivo, verbo, pronome, advérbio, na linha de Ernesto Guerra da Cal); o emprego expressivo de figuras, como a comparação, a metáfora, a hipérbole; a expressividade imagística (imagens auditivas, olfativas, gustativas, tácteis, visuais, sinestesias); a expressão temática de motivos estilísticos, como o amor, a vida, a morte; a expressão do tempo e a concepção de espaço; o confronto estilístico de textos; a motivação sonora, o ritmo e a melodia frasal; a visão do mundo, como elemento organizador da obra de arte literária; e vários outros.

[2] O substantivo gargalhada, ao contrário do riso amargo no canto da boca, provocado pela leitura de Machado de Assis, bem define o senso de humor e a ironia cortantes de Eça de Queirós.  Chegou-se mesmo a dizer que a leitura de Eça servia para “desopilar o fígado.”  E não se disse mal, pois hoje, pela risoterapia ou geloterapia, procura-se curar a depressão ou a insônia com a gargalhada.  Isso porque o riso franco e aberto, como o que a leitura do romance eciano provoca, aumenta a liberação de endorfinas – substâncias naturais com ação calmante – e facilita a digestão, melhorando a eliminação da bílis.  A chamada risoterapia, que já é utilizada em cinco nações, entre elas os Estados Unidos da América, estimula ainda os sistemas imunológico e cardiovascular.  E daí se conclui que a risoterapia tem, na leitura dos romances de Eça de Queirós, um forte aliado...

Copyright ABF Academia Brasileira de Filologia - Todos direitos reservados                                           Desenvolvido por: